TUDO É POLÍTICA. INCLUSIVE O FUTEBOL
Assisti só ao segundo tempo da final do Campeonato Paulista, que deu o título ao Corinthians, numa jornada e tanto: conquistou a taça invicto, o que não acontecia no campeonato estadual desde 1972. Isso tudo depois de o Timão ter descido aos infernos. Dispensável dizer o que isso significa para os corintianos e um tanto […]
Acompanhava o jogo pelo rádio. Mesmo aquela narração caudalosa e hiperbólica me permitiu compreender que Domingos, zagueiro santista, não estava em campo para jogar futebol propriamente. E, segundo vi depois, ele não queria jogar esporte nenhum. Se as suas investidas tivessem tido cem por cento de eficiência, ele teria quebrado a perna de alguém. E não se entra para quebrar a perna de ninguém nem numa partida de rugby, em que o choque entre os jogadores impressiona pela violência — sobretudo porque desprotegidos. Todas as vezes em que vi — eu e todo mundo — Domingos em ação, ele estava solando o tornozelo do adversário. Invariavelmente, recitava alguns poemas ao seu ouvido. O Santos já usara expediente parecido na partida final contra o Palmeiras, que resultou na expulsão do talentoso Diego Souza.
Tal comportamento não impediu que Domingos só fosse expulso aos 38 minutos do segundo tempo, numa falta contra Ronaldo — de fato, a menos dura de todas, embora, naquele caso, se pudesse argumentar que ele atuou para impedir o adversário de tentar o gol. Uma vergonha, sim, para a arbitragem brasileira. É preciso saber quando se quer jogar bola e quando se quer praticar terrorismo em campo — sim, há a variante desportiva do terrorismo.
Assisti ao segundo tempo na Globo. E aqui vai o meu descontentamento com uma troca de comentários entre o sempre correto e comedido Cléber Machado e Caio Ribeiro, ex-jogador e agora comentarista, que tem me surpreendido positivamente. Numa daquelas trocas de bola entre os corintianos para matar o tempo, um jogador, não sei se foi Dentinho (não lembro mesmo), fez lá uma graça qualquer com a bola — no meu tempo, chamávamos aquilo de “drible” — ou “dibre”, para Rivelino… Sou de um tempo em que o bom jogador ainda precisava saber driblar. Não era ofensa. Não!!! Era até um obrigação.
Adivinhem quem apareceu para derrubar um? Domingos, claro! Que acabou tendo seu comportamento, na prática e para todos os efeitos, endossado pela dupla, que considerou a firula com a bola um desrespeito com o adversário, uma atitude antidesportiva. Caio chegou a dizer que a troca seca de passes, de primeira, quando o adversário é posto da roda e a torcida grita “olé”, é aceitável e correta. Mas não aquilo que considerou “desrespeito” — e que nada mais era do que aquela coisa que Rivelino chama… “dibre”. Os dois fizeram do drible e da entrada na canela uma espécie de práticas opostas, mas combinadas: onde está o primeiro está também o segundo.
É como se agora fosse politicamente incorreto driblar em campo. É como se o talento devesse ser usado com parcimônia para não humilhar os sem-talento. Estive recentemente com Nelson Ascher no programa “Entre Aspas”, da GloboNews, comandado por Mônica Waldvogel. Discutíamos o “fenômeno” Susan Boyle, e Nelson afirmou que o sucesso, daqui a pouco, será considerado uma espécie de etapa — quem sabe superior — da luta pelos direitos humanos… Até no campo, como a gente vê, parece que os sem-talento não podem mais ser humilhados pelos talentosos. É mesmo um desrespeito. Se o jogador souber driblar e fizer algumas graças com a bola, que tome cuidado. Pode receber um pé no tornozelo como reação — no caso, reação considerada compreensível. Assim, chegamos ao ponto em que, de fato, a canelada é moralmente superior à habilidade com a bola.
Uma leitora, inconformada com as minhas observações sobre Susan Boyle na TV, acusou-me de “pensar demais” e de “politizar tudo”. Tratou das duas coisas como dois defeitos meus, ao lado de algumas qualidades etc e tal. Não sei se penso demais — acho que não; há quem diga que penso de menos… Mas, com efeito, a política está em todos os lugares. Basta que você estabeleça uma hierarquia de valores, e ela já passa a existir. Na minha hierarquia, o “dibre” do Rivelino vem antes, muito antes, dos pisões de Domingos. Na verdade, eles nem entram em campo.
PS: já sei que alguns comentaristas entrarão para dizer que eu deveria me ater à política e deixar o futebol de lado porque nada entendo desse assunto nem nunca fui jogador. É verdade. Devo ter sido o pior da minha turma — até porque tinha de jogar sem óculos e mal enxergava a bola. Um vexame mesmo! Eu me vingava depois não passando cola. Cada um com as armas que tem, hehe. Mas tinha a boa inveja dos habilidosos com a bola, embora eles pudessem não invejar as minhas notas. Se pudesse, escolheria ser o que eu era mais a habilidade deles. A boa inveja é aquela traduzida em admiração. A ressentida quebra a perna dos talentosos.