Pode não parecer, mas a liminar de Barroso vislumbra um mundo em que um senador condenado a 30 anos de cadeia poderia manter seu mandato. É boa para punir Donadon, mas é uma aberração!
O ministro Roberto Barroso suspendeu, em caráter liminar, como vocês sabem, os efeitos da sessão da Câmara que manteve o mandato do deputado Natan Donadon (sem partido-RO), atendendo a mandado de segurança impetrado pelo PSDB. Vocês sabem o que penso em essência sobe o caso, e é, pois, óbvio, que concordo com o sentido moral […]
O ministro Roberto Barroso suspendeu, em caráter liminar, como vocês sabem, os efeitos da sessão da Câmara que manteve o mandato do deputado Natan Donadon (sem partido-RO), atendendo a mandado de segurança impetrado pelo PSDB. Vocês sabem o que penso em essência sobe o caso, e é, pois, óbvio, que concordo com o sentido moral da liminar concedida. Mas sou quem sou. Meu compromisso com os meus leitores é dizer o que penso, atendo-me aos fatos. A decisão, reitero, é moralmente correta, mas a liminar de Barroso é um dos mais, como posso chamar?, sofisticados — prenhes de sofismas — exercícios de direito criativo que vi nos últimos tempos. A impressão que tenho, máxima vênia, é que Barroso se assustou um tantinho com os efeitos práticos de uma decisão recente de que ele é parte e que, na prática, permite o descalabro de se ter um parlamentar-presidiário.
A situação já era meio confusa, e Barroso ajudou a torná-la ainda mais enrolada. O Artigo 15 da Constituição diz que a condenação criminal, com sentença transitada em julgado, suspende os direitos políticos do condenado pelo tempo que durar a condenação. Logo, Donadon e os deputados mensaleiros, por exemplo, perderam seus direitos políticos. O Artigo 55 da Constituição, com efeito, já demonstrei aqui, permite, sim, duas leituras — e é inútil dizer que não, o que quer dizer que ele tem de ser reformado, vamos ser claros!: a) uma envia a decisão sobre a cassação de mandato para o plenário da Câmara, em votação secreta; b) a outra estabelece que a Mesa faz um simples ato declaratório. Ora, para que se aplique esse dispositivo que chamo aqui de “b”, basta que o parlamentar tenha tido seus direitos políticos cassados ou suspensos.
Segundo Barroso, não! Ele considera que os deputados e senadores são exceção e que essa norma não os alcança. É? Então doutor Barroso está a nos dizer que é possível haver um deputado e um senador sem direitos políticos, certo? Afinal, a Câmara e o Senado até podem ter o poder, segundo ele diz, de não cassar o mandato, mas o de devolver os direitos políticos, ah, isso ele não tem. Ora, o Artigo 14 da Constituição exige que um simples candidato tenha os direitos políticos intactos. Por que um candidato há de tê-los, mas um parlamentar poderia não tê-los é um desses segredos que se escondem em algum escaninho da mente brilhante de doutor Barroso — e disso ele não trata em sua liminar.
Chamo seu texto de “exercício sofisticado” porque embute, a meu ver, um cadeia de sofismas que procura, a um só tempo, justificar o seu voto na sessão que condenou o senador Ivo Cassol (PP-RO), mas deixando que o Senado, em sessão secreta, decida sobre o seu mandato, e, ao mesmo tempo, dar uma satisfação à sociedade, que está indignada com a barbaridade do caso Donadon. Ou por outra: o ministro, parece-me, ficou com medo da própria criatura.
Numa liminar em que, reitero, ele defende com eloquência o seu voto no caso Ivo Cassol (passa a maior parte do tempo se justificando), ele acaba concluindo que é preciso suspender os efeitos da sessão que manteve o mandato de Donadon. E onde ele foi buscar inspiração para tomar essa decisão? Pois é… Ele fez o seguinte percurso (em vermelho):
Disso resulta que o condenado em regime inicial fechado, cujo período remanescente de mandato seja inferior a 1/6 (um sexto) da pena a que foi condenado – isto é, ao tempo mínimo que terá de permanecer necessariamente na penitenciária (LEP, art. 87) –, não pode conservar o mandato. É que, nessa situação, verifica-se uma impossibilidade jurídica e física para o exercício do mandato. Jurídica, porque uma das condições mínimas exigidas pela Constituição para o exercício do mandato é o comparecimento às sessões da Casa (CF, arts. 55, III, e 56, II). E física, porque ele simplesmente não tem como estar presente ao local onde se realizam os trabalhos e, sobretudo, as sessões deliberativas da Casa Legislativa. Veja-se, então: o mandato do Deputado Natan Donadon terminaria em 31.01.2015, isto é, cerca de 17 (dezessete) meses após a deliberação da Câmara, que se deu em 28.08.2013. Porém, 1/6 da sua pena de 13 anos, 4 meses e 10 dias corresponde a pouco mais de 26 meses. Logo, o prazo de cumprimento de pena em regime fechado ultrapassa o período restante do seu mandato.
(…)
Em rigor, à luz do que dispõem os art. 55 (Inciso III), 56 (Inciso II), da Constituição, seria possível cogitar da perda automática de mandato em todos os casos de prisão em regime fechado cujo prazo ultrapassar um terço das sessões ordinárias ou, no máximo, cento e vinte dias. Com efeito, o art. 55, III estabelece que perderá o mandato o Deputado ou Senador “que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada”. A pena de prisão não parece se enquadrar em nenhuma das duas hipóteses. Mas ainda que fosse possível a licença, ela não poderia exceder, nos termos do art. 56, II, o prazo de cento e vinte dias. De todo modo, não há necessidade de expandir essa discussão para a solução do caso presente.
Voltei
Máxima vênia, é direito criativo, sim! É perfeitamente demonstrável – e não se cuida aqui de nenhum outro aspecto que não o puramente fático – que Natan Donadon não vai faltar às sessões por um ato de vontade — é que, convenham, ele não poderá comparecer mesmo, não é?, ainda que quisesse.
Parece-me, ademais, que o ministro trata o regime semiaberto de uma forma, como direi?, excessivamente aberta. É bom lembrar que esse regime, a rigor, é fechado. Ele só é exercido com menos vigilância. No Brasil da esculhambação, acaba virando regime aberto porque quase não há instituições para tanto preparadas. Vamos ver o que diz o Artigo 35 do Código Penal:
Art. 35 – Aplica-se a norma do art. 34 deste Código, caput, ao condenado que inicie o cumprimento da pena em regime semi-aberto.
§ 1º – O condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar.
§ 2º – O trabalho externo é admissível, bem como a frequência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior.
De todo modo, seria lindo um deputado ou senador a passar o dia no Congresso e a noite na cadeia… Mais um pouquinho. Vamos ver para onde isso nos leva. O deputado João Paulo Cunha, por exemplo, foi condenado a uma pena total de 9 anos e quatro meses, assim composta:
peculato – 3 anos e quatro meses;
corrupção passiva – 3 anos;
lavagem de dinheiro – 3 anos anos.
Muito bem! Digamos que João Paulo tivesse sido condenado “só” por peculato e corrupção passiva, coisa, assim, de seis anos e quatro meses. Bem, no modelo de Barroso, ele poderia passar os dias legislando no Congresso — MESMO SEM DIREITOS POLÍTICOS —, mas dormindo na prisão. Afinal, estaria no semiaberto. E no aberto então? Digamos que fosse apenas um corrupto ou um peculatário… Com pena inferior a quatro anos, estaria no regime aberto. Seria chamado de excelência no Congresso e passaria as noites num apartamento funcional. “Ah, assim quer a lei”. Não! Já está mais do que evidenciado que há outro caminho.
A coisa é de tal sorte especiosa que esse modelo permitira que alguém condenado a 20 anos de cadeia mantivesse o mandato se assim decidissem a Câmara e o Senado. Digamos que o sujeito fosse condenado no começo do mandato a 240 meses de prisão. Cumprido um sexto, teria direito ao semiaberto depois de 40 meses (três anos e quatro meses). Sobraria, caso de deputado, mais 8 meses de mandato. Um senador, então, poderia levar a condenação máxima: 30 anos. Cumprira 5 anos em regime fechado; teria mais três de mandato para cumprir no semiaberto.
Ainda não acabei. Se é como Barroso quer, então Donadon não pode ser cassado já. Há que esperar que se cumpra aquele terço de faltas. Até que isso não fique caracterizado, tem de seguir deputado, ora… Ou o doutor vai defender a antecipação da pena?
Encerro
Reitero: é bom que o descalabro aprovado pela Câmara seja revertido, sim. Mas a liminar concedida por Barroso, a meu ver, faz uma lambança danada. Ou bem ele não reconhece uma cadeia de eventos, fortemente amparada em lei, que cassa os direitos políticos do parlamentar — e, pois, o seu mandato — e deixa que a Câmara decida livremente, ou bem ele reconhece que a existência de um parlamentar sem direitos políticos é uma aberração, o que obriga a Câmara a apenas declarar a perda do mandato, sem a necessidade da votação secreta.
Aí não tem jeito: se ele escolhe o primeiro caminho — e foi o que ele escolheu no caso de Ivo Cassol —, então aberração, segundo seus próprios termos, é a liminar de agora. Insisto: ela pode vir a ser efetiva para cassar o mandato de Donadon, mas se sustenta em premissas que permitem que um senador condenado a 30 anos de prisão mantenha seu mandato — se assim quiser o Senado. Nesse ritmo, logo teremos o Partido Popular da Papuda.