Os caminhos da liberdade e a idade da razão
Reproduzi ontem aqui, como sabem, dois textos: um de Marcelo Coelho, da Folha; outro de Cora Rónai, de O Globo. Um deles, o de Coelho, nos conclama a deixar de lado essa conversa de cartões, mero “moralismo de vestais”; o outro, o de Cora, lamenta o fato de que tantos jornalistas se dediquem à tarefa […]
Um texto justifica os males menores sob o pretexto de combater males maiores; o outro rejeita qualquer flerte com o crime; um texto mascara sua ideologia finalista, com um horizonte utópico certamente de esquerda, acusando um suposto “macarthismo” no país; o outro rejeita bitolas no pensamento e não proclama, mas exercita a sua liberdade.
Um deles é expressão de uma estrutura que não está sabendo envelhecer; o outro é manifestação de uma estrutura que está aprendendo a rejuvenescer.
À diferença do que muitos possam pensar, tenho simpatia natural pelos que escolhem andar na contramão. De certo modo, fiz isso a vida inteira. Mas não o fiz por maneirismo ou gosto por jogos de salão. Acreditem: em muitos aspectos, a imprensa brasileira soube ser mais libertária justamente quando o mais fácil era ceder: ou às pressões do governo ou à patrulha esquerdista, que então vinha nos oferecer a sua falsa gesta humanista como contraponto ao regime militar. No fim dos anos 70 e nos 80, havia, como bem lembrou Cora em seu texto, “eles”, os da ditadura, e “nós”, os da democracia. O melhor jornalismo se fez — e não deixo de ter saudade, como leitor, daquela Folha por exemplo — também do questionamento da doxa esquerdista, não apenas do confronto com a estupidez do regime militar.
Mas a chegada ao poder de um partido de esquerda — em boa parte de seus postulados ao menos — foi uma tragédia para o pensamento acadêmico e para setores da imprensa que se alimentavam das contestações dessa academia. Explica-se: a universidade acovardou-se de uma forma miserável, optando pela mais estúpida subserviência ao lulo-petismo. Um certo frescor da contestação do fim dos 70 e dos 80 regrediu à mais baixa extração do stalinismo. Contentamo-nos — ou “eles” se contentam — em dividir o mundo entre os progressistas (mesmo quando equivocados) e os reacionários — equivocados, claro, desde sempre.
E porque aprendemos que os opostos perturbam o pensamento, a maneira fácil de sair de dilemas é decretar o empate: “São todos iguais; isso, afinal, é apenas política”. É o fundamento, se há algum, do texto de Marcelo Coelho, vejam lá. Quando se diz que um partido que optou pelo crime como método — não se tratou, afinal, de um deslize — não se distingue de seus adversários, o que se faz, na prática, e inocentar o criminoso e criminalizar os que, até que surjam evidências contrárias ao menos, são inocentes.
O aborrecido no texto de Coelho é que talvez nem ele próprio se dê conta da velharia desse pensamento — ou, então, sabe o que diz e está fazendo militância a seu modo. Esse caminho de Coelho já foi percorrido antes por todos os justificadores do stalinismo, por exemplo — infinitamente mais cruel e criminoso do que o PT, é certo: apelo ao exemplo extremo para evidenciar a essência do que ele diz.
Notem uma coisa importante: a memória do comunismo não tem povo. Nada restou senão um legado de destruição, de morte, de individualidades esmagadas. O que remanesce do socialismo é contribuição de intelectuais, dedicados a uma espécie de reengenharia do homem, na sua dedicada estupidez de tomar a ciência, nem que seja a social, como divindade. O caso mais notável de desastre moral, acho eu, foi Jean-Paul Sartre: quando o mais fácil era ser servil ao comunismo no enfrentamento do nazismo, optou por uma forma de resistência antifascista, sim, mas sem jamais ceder ao pelo do compromisso com “o” partido — entenda-se: o Partido Comunista e a União Soviética. A trilogia Os Caminhos da Liberdade, cuja leitura recomendo vivamente, escrita entre 1945 e 1949, exalta uma outra forma de “engajamento”: fora da camisa de força da ideologia.
Tendo sabido resistir ao comunismo em momentos de guerra ideológica extrema, subordinou-se depois à União Soviética de forma miserável. E, entendo, morreu para o pensamento, até ser flagrado, em 1968, precocemente gagá, a endossar o fascismo da revolta estudantil.
Jovem trotskista, Os Caminhos… me ajudaram a perceber meus próprios erros, acreditem. Há uma fase de todo quase-adolescente em que acreditamos que os livros foram escritos para nós. Busco o primeiro volume da trilogia, A Idade da Razão, escrito em 1939 e publicado só em 1945 (os outros dois são Sursis e Com A Morte na Alma). Faço, desde sempre, ficha de leitura de tudo o que leio — um papelucho com anotações a lápis. Mathieu Delarue, o professor de filosofia e anti-herói do livro, diz a um amigo militante: “Não tenho nada a defender; não me envaideço da minha vida e não tenho um níquel. Minha liberdade? Ela me pesa. Há anos que sou livre à toa. Morro de vontade de trocá-la por uma convicção. De bom grado, trabalharia com vocês ; isso me afastaria de mim mesmo, e tenho necessidade de me esquecer um pouco (…) Apesar de tudo, não posso tomar partido, não tenho razões suficientes para isso. Revolto-me, como vocês, contra a mesma espécie de indivíduos, contra as mesmas coisas, mas não é o bastante. Não é minha culpa. Mentiria se dissesse que me sentiria satisfeito em desfilar de punho erguido ao som da Internacional”.
Aquela frase “Há anos que sou livre à toa” passou a martelar na minha cabeça. Eu era todo engajado, sim — mas queria isto: “ser livre à toa”. Aquilo de que o próprio Mathieu diz querer se livrar — ou de que esperam que ele se livre — me pareceu, na verdade, um lugar a se chegar. Impressiona-me que Sartre tenha compreendido tão bem e tão profundamente a questão da liberdade e tenha se tornado, depois, um lacaio intelectual do stalinismo e da União Soviética — até chegar a 1968, quando, então, se engaja na loucura pura e simplesmente.
O que o fez dar aqueles passos? Os intelectuais de esquerda estavam convencidos de que se opor ao “imperialismo” era uma imperativo moral, e a forma concreta de fazê-lo, o caminho possível, embora não ideal, era o Partido Comunista, era a União Soviética. Mathieu não via motivos para levantar o braço e cantar a Internacional. Sartre passou a vê-los. Muitos tontos os encontram também hoje, ainda que, é claro, as causas “modernas” sejam outras. Mas os mecanismos que justificam o crime são certamente os mesmos.
Estavam aqueles e estão estes de hoje convencidos de que existe um “mal maior” a que se opor: naquele caso, o imperialismo; no Brasil atual, sei lá, acho que chamam de “a direita”. A exemplo de Sartre, uma parte da imprensa brasileira soube ser original quando era mais fácil ser convencionalmente governista OU convencionalmente esquerdista. Com a chegada da esquerda ao poder, o que antes era criativo e novo se tornou, vejam só, convencionalmente esquerdista E convencionalmente governista. Ao mesmo tempo.
Lastimo ainda, finalmente, que esta parte da imprensa, por vontade ou de modo involuntário, tanto faz, esteja servindo de escada a alguns larápios, que transformaram o jornalismo num negócio, já que seu negócio nunca foi fazer jornalismo.
Perdoem-me se me alonguei demais. Dizem que blog é para textos curtos. Os meus podem ser, às vezes, bem longos. Mas todos já sabemos que os leitores desta página não têm preguiça, a exemplo de seu autor, que vocês toleram com tanta generosidade.