O caso Schoedl
Vocês já leram, sei bem, mas fica o registro. Do Jornal Nacional. Volto depois: O Conselho Nacional do Ministério Público decidiu afastar do cargo o promotor acusado de assassinar um rapaz no litoral paulista e revogou uma decisão do Ministério Público de São Paulo. Foi unânime. Os integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público suspenderam […]
O Conselho Nacional do Ministério Público decidiu afastar do cargo o promotor acusado de assassinar um rapaz no litoral paulista e revogou uma decisão do Ministério Público de São Paulo. Foi unânime. Os integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público suspenderam a decisão que transformou em vitalício o cargo do promotor Thales Ferri Schoedl. Consideraram que ele teve uma conduta pessoal inadequada e, por isso, não pode desempenhar a função.
“Em homenagem à lisura, à publicidade, à própria imagem do Ministério Público, mais do que necessária foi a decisão”, afirmou Adércio Leite Sampaio, secretário geral do Conselho Nacional do Ministério Público. Em 2004, no litoral paulista, Thales Ferri Schoedl atirou contra dois jovens que teriam mexido com a namorada dele. Diego Mendes morreu e Felipe Siqueira ficou ferido. O promotor, que diz ter agido em legítima defesa, chegou a ser preso e nos últimos três anos ficou afastado do trabalho.
No dia 29, o órgão especial do Ministério Público do estado de São Paulo decidiu que Thales Ferri Schoedl permaneceria com o cargo de promotor. Com isso, continuaria com o salário de R$ 10,5 mil e ganharia foro privilegiado, o direito de responder pelos crimes de homicídio e de tentativa de homicídio num colégio de desembargadores do Tribunal de Justiça, e não num júri popular.
A votação na semana passada foi apertada: 16 procuradores foram favoráveis à decisão de dar um cargo vitalício a Thales Ferri Schoedl e 15, contrários. O advogado do promotor, Rodrigo Marzagão, diz que ninguém pode interferir nesta decisão. “A Constituição prevê recurso para o Supremo Tribunal Federal. Nós vamos analisar esta possibilidade”. Para o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, os mecanismos internos de controle do Ministério Público estadual falharam, mas agora veio a correção.
“Nós defendemos que ele seja excluído da carreira e seja julgado como todo e qualquer cidadão perante o Tribunal do Júri da cidade em que cometeu o homicídio”. O pai Wilson Siqueira, ao lado do filho Felipe que sobreviveu aos disparos, diz que se sente consolado. “Nós saímos do desamparo da quarta-feira da semana passada para um grande alento no dia de hoje”.
Voltei
Sei que há divergências a respeito, especialmente porque a tese da legítima defesa é muito forte. Mas convenham: o Ministério Público de São Paulo, neste caso, tinha um mínimo a fazer e não o fez. Até, se fosse o caso, em benefício do próprio acusado. Os desembargadores do Tribunal de Justiça seriam menos severos com Schoedl do que um júri comum? Não creio que se possa afirmar isso por princípio. De toda maneira, que se registre: o ato, agora, do Conselho não condena ninguém. Apenas impede que se dê curso a uma efetivação que, da maneira como estava, parecia colher um promotor qualquer, sem uma pendência importante com a Justiça.
Repito o que escrevi aqui a respeito na sexta-feira (em azul):
Vamos ver. Tranqüila a decisão não é, ou ela não teria literalmente rachado o Colégio de Procuradores do Ministério Público de São Paulo: 16 votaram pela sua manutenção no cargo, e 15 se opuseram. Suponho, portanto, que a escolha é controversa até mesmo entre aqueles que são especialistas na área. Dizem os defensores do promotor que ele agiu em legítima defesa, que teria chegado mesmo a haver uma luta corporal entre ele e a vítima — ou seus amigos, não sei bem. Queriam lhe tomar a arma. E, finalmente, a tragédia.
Foi assim? Vai-se conseguir provar a legítima defesa? Muito bem: Schoedl será absolvido. Reparem que empresto certa esfera de diz-que-diz-que às circunstâncias do assassinato porque, para o que escrevi, elas são irrelevantes — são importantes para absolvê-lo ou para condená-lo, não para manter no Ministério Público quem matou uma pessoa.
Vocês todos sabem que o meu mundo tem hierarquia, e, nele, o decoro ocupa lugar de destaque. Estou entre aqueles que acham que o sacristão tem de ter moral mais reta do que o simples fiel; o padre, mais do que o sacristão; o bispo, mais do que o padre. Até chegar ao Sumo Pontífice. As leis são o remédio da sociedade. Mas, indagaria Padre Vieira, “quem remedeia os remédios?” Uma dessas pessoas é o promotor. Data vênia, excelências: ele não pode estar com uma morte, sem julgamento, a lhe pesar nas costas — se é que a mesma, ao lhe pesar na consciência, não vai lhe turvar para sempre a clareza para exercício tão importante.
Ora, como promotor, estará basicamente exercendo um trabalho de acusação. Atenção, advogados: vocês sabem muito bem que o trabalho de um acusador é dizer que os matizes não têm importância, chamando sempre a atenção para o fato principal. É a defesa quem busca atenuantes, relativismos, interstícios entre a verdade seca — ele matou — e a verdade em progresso: “mas matou por quê?” Schoedl está muito ocupado em se defender para poder acusar com clareza. Schoedl terá de, no seu trabalho, ignorar os atenuantes que seus advogados buscam para ele próprio. Não gostaria de estar em seu lugar também por isso.
Mais: seguindo aquele meu mundo hierarquizado, não espero que um promotor seja um santo, mas acho que lhe cabe mais temperança do que à média das pessoas. E ele teve muito menos, convenham, já que tal média não sai por aí matando pessoas, ainda que sob ameaça de agressão. Teria sido melhor, aliás (e eu fiz campanha pelo “não” no tal plebiscito), que nem mesmo estivesse armado num condomínio à beira-mar. Armado embora, muito mais prudente teria sido deixar, então, de lado os eventuais provocadores — a ser verdade a versão da legítima defesa. Quem dispara 12 tiros está literalmente brincando com fogo. O homem comum tem de ter temperança; um promotor tem de ter mais. Ele é um dos instrumentos por meio dos quais se põe para funcionar o estado de direito.
O trecho que mais gerou espécie foi este: “O texto acima diz que o promotor é um ‘acusado’ porque se atém à formalidade jurídica. Mas notem bem: ele matou uma pessoa, diante de várias testemunhas. Vá lá. Ele não foi condenado, mas culpado — e se pode qualificar essa culpa — ele é.” Considerei ter sido suficientemente claro, mas não fui. Achei que, ao falar da formalidade jurídica, já estava claro que não ignoro que ninguém é “culpado”, num processo, até que a Justiça não o condene. Empreguei a palavra na acepção 3 do Houaiss: “que ou o que é responsável (ou é acusado de sê-lo) por qualquer falta ou conseqüência desastrosa, seja por ação direta ou indireta, seja por omissão.” E isso, inegavelmente, Schoedl o é. Ele estava armado. Ele atirou. Ele matou. E ele é promotor, um servidor do estado, alguém preparado para cobrar a aplicação da letra da lei, não para fazer justiça com as próprias mãos
Mas vá lá, cavalheiros. Em nome do sacerdócio, que se esperasse ao menos o julgamento. Um julgamento como homem comum, já que quem matou, em legítima defesa ou não, não foi o promotor, mas o cidadão. Ou notem que contradição: na hora de preservar posto e salário, Schoedl quer ser um homem comum — “ninguém é culpado antes da condenação” —, mas, para se livrar de um tribunal comum, aí, então, ele se lembra de que é promotor. Espero ter sido claro e lógico, como pretendo ser sempre.