Equivocado. Perigoso. Irresponsável.
Equivocado, perigoso e, quem sabe?, irresponsável o editorial da Folha de S.Paulo deste sábado sobre a invasão da reitoria da USP. Eu o reproduzo abaixo, em vermelho, entremeado de comentários meus, em azul. A INTERVENÇÃO do secretário estadual da Justiça, Luiz Antonio Marrey, na negociação com os universitários que ocupam a reitoria da USP indica […]
A INTERVENÇÃO do secretário estadual da Justiça, Luiz Antonio Marrey, na negociação com os universitários que ocupam a reitoria da USP indica a disposição do governo José Serra, mesmo que tardia, para desfazer um impasse que ajudou a criar. Mas isso não é o bastante. Governador, reitoria e estudantes precisam dar mais alguns passos para solucionar a situação, que já passou do razoável.
Há aí um juízo sobre a atuação do governo, que teria demorado para negociar, coisa de que discordo, e a admissão do terrorismo como forma de pressão política. O debate sobre os tais decretos existe desde a sua publicação. A invasão da reitoria correspondeu à interrupção desse diálogo. Estamos diante de divergências de opinião, não de matéria de princípio. O que é matéria de princípio é outra coisa: a Folha assume, agora como opinião do jornal, que há três partes nesse conflito: o governo, a reitoria e os invasores. Entende-se que, a partir deste texto — ou, então, gostaria de saber por que não —, sempre que um grupo invadir uma área pública, ao arrepio da lei, estará se legitimando para o diálogo. É isso o que a Folha entende por democracia?
O editorial, querendo ou não, deixa de reconhecer o ambiente do estado de direito. Mais adiante, veremos que o jornal também tem restrições aos tais decretos — parece que sua pauta é um tanto próxima da dos invasores. Tudo bem. É um direito seu, como é um direito meu defender que a USP preste contas de seus atos. O que me parece inaceitável é a admissão da prática do terrorismo, do confronto. Note-se que não há uma só palavra de censura à violência óbvia, escancarada, que caracteriza a atuação dos invasores. Para a Folha, a partir de agora, o estado de direito decorre da capacidade dos grupos organizados de perturbar a ordem pública.
Da reitora Suely Vilela não se pode esperar muito mais do que seu desempenho até aqui sugere -algo próximo da omissão. Recomenda-se parar de estipular prazos para a desocupação seguidamente ignorados. Dos estudantes seria auspicioso ver enfim um gesto político mais consistente. Por exemplo, o reconhecimento de quanto já obtiveram de atenção para sua extensa pauta de reivindicações, bem como de concessões do governo. Numa negociação, algo que já se provaram capazes de impor, é crucial saber ceder.
Por outro lado, espera-se do governador uma atitude mais transparente. Serra falou, ontem, mas pouco acrescentou. Queixou-se de “exploração política”, o que parece óbvio. Pronunciou-se, também, sobre a questão da autonomia universitária, estopim da revolta: “Não há nada, do ponto de vista de decretos, de leis etc. que fira, que seja contraditório com essa autonomia”, disse o governador.
No conjunto, só concordo com a crítica ao desempenho de Tia Suely, que permitiu que a universidade que dirige fosse transformada num misto de boteco e cortiço. Todo o resto é um equívoco brutal — e eu exponho os meus critérios de análise: democracia e estado de direito. Quais são os da Folha? Notem que se reitera no erro de considerar que há três partes legítimas na negociação: reitoria, invasores e governo. Da primeira, o jornal já não espera nada. Das outras duas, cobra maleabilidade. Vai ver foi de posse desses mesmos princípios que França e Inglaterra aceitaram fazer o Pacto de Munique. O exemplo é exagerado? Só estou demonstrando, com o caso extremo, que as idéias têm filiação.
Mas o escândalo maior é outro: reparem que o editorial cobra de Serra “a transparência”. Dos invasores, nada. Estes, tudo indica, já são transparentes. O texto, querendo ou não, incentiva a violência e endossa os métodos. Os ilegais não têm de “acrescentar” mais nada.
Não é tão simples assim. O decreto nº 51.636, de 9 de março, ainda reserva à Secretaria da Fazenda a atribuição de decidir sobre pedidos de transposição de quotas orçamentárias (artigo 10º, inciso I, alínea d) e, no artigo 15, estipula que as normas do diploma se aplicam, sim, às universidades. Para os manifestantes, tal determinação implica restrição à autonomia universitária consagrada na Constituição.
Tanto o secretário da Fazenda, Mauro Ricardo Costa, quanto os reitores das três universidades estaduais já se pronunciaram a favor da interpretação de Serra. O que não se entende, então, é o motivo de não ter sido ainda alterado o texto. Foi o que fez o governo, sob pressão, com o artigo 42 do decreto nº 51.461, que transferia para José Aristodemo Pinotti, da recém-criada Secretaria de Ensino Superior, a presidência do conselho de reitores.
É uma desfaçatez. Está claro, como reconhece o texto, que os tais decretos não ferem a autonomia da universidade, que poderiam tocar a sua vida normalmente. Ah, mas os invasores acham que não é assim — e, tudo indica, o jornal também. Logo, qual seria a maneira de Serra colaborar para o fim do conflito? Ora, vejam ali: mudando o texto. Sim, isto mesmo: o governo colabora cedendo à chantagem, à violência, admitindo como legítimo o assalto ao estado de direito. E a colaboração dos estudantes seria qual? Segundo se entende, deixariam a reitoria. Entendi: a família do seqüestrado colabora pagando o resgate; e os seqüestradores, soltando a vítima. O estuprador colabora se comportando bem, e a moça, não usando minissaia.
Se o recuo já ocorreu, falta reconhecê-lo. Como falta também, da parte de Serra, explicitar o que pretendia com a saraivada de decretos que afetam as universidades. Entre outros pontos, poderia esclarecer o que entende por ampliar as atividades de pesquisa, “principalmente as operacionais, objetivando os problemas da realidade nacional”.
A que recuo se refere o texto? Houve, sim, mudanças no conteúdo dos decretos, decorrentes da negociação. Assim se faz numa democracia. Reitores não gostaram disso e daquilo; houve dúvidas sobre a autonomia, todas dirimidas, inclusive com mudanças no texto legal. Observem: ainda é o governador que é alvo da condenação do jornal. Aos invasores, não há uma miserável palavra de censura. Seus métodos são admitidos como legítimos. Mais: há uma especulação, de cunho claramente conspiratório, contra o que se chama “saraivada de decretos”. O que o governador estaria querendo com isso? E sobre as intenções dos alunos? Ah, estes são inocentes como as suas flores de papel crepom. Os testemunhos dos alunos que mandam textos para este blog relatando ambiente e métodos dos comuno-fascistas evidenciam que as coisas não são assim. Os invasores são os primeiros a dizer que o objetivo é aplicar uma derrota ao governo “neoliberal” de Serra. A Folha está pedindo que Serra ceda à lógica dos seqüestradores da lei e da ordem; a Folha está dizendo que Serra deu o pretexto e colhe o que plantou. A Folha não distingue, no editorial, o legal do ilegal. Ou melhor, distingue: cobra da legalidade que ceda à ilegalidade.
Muitos nas universidades públicas paulistas vêem aí menção cifrada a um programa de submissão das instituições a necessidades de empresas, do que discordam. É uma boa discussão, pois não raro a comunidade universitária emprega mais preconceitos que argumentos contra essa aproximação. Sem deixar claro se tem de fato um programa, e qual ele é, o governador só aumenta a confusão.
Trata-se de um caso de dislexia argumentativa. O texto parece encerrar afirmando que não passa de preconceito o temor da aproximação entre universidades e empresas. Muito bem! Que bom que a Folha não defende para a universidade brasileira um modelo avesso ao progresso e distinto do que se faz nos países democráticos. Ao mesmo tempo, supõe ser esta a intenção secreta do governador, o que estaria na raiz dos decretos e, pois, da mobilização dos invasores, o que faria deles parte legitima da negociação. Parece que o redator, algo incomodado com a própria proposição e certamente desconfiado de que seu texto poderia ser visto como um libelo pró-invasão (o que ele, de fato, é), decidiu dar uma chance ao cravo, depois de ter feito a apologia da ferradura.
Ah, claro: e talvez tenha faltado uma menção, lateral que fosse, ao fato de que o movimento representa a extrema minoria da universidade. A última assembléia de professores que decidiu pela continuidade da greve, que não existe, reuniu 200 pessoas, nem todas docentes. Ainda que fossem, eram 3,8% dos 5.222 da USP — e todos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, um verdadeiro campo de prova da militância de extrema esquerda.
O recado está dado: sempre que você estiver descontente com algum ato do governo, vá à luta. Invada, imponha-se pela violência, ameace. A Folha aplaude.