Egito: Irmandade Muçulmana em primeiro, o grupo ainda mais radical em segundo, os grupos laicos lá atrás… Pois é!
Um leitor ou outro reclamam quando, às vezes, escrevo textos na linha: “Eu não falei?” É chato? Huuummm… Pois é. Ocorre o seguinte: quem faz análise a partir de alguns dados pode errar ou acertar. Se acerta, é sinal de que escolheu os fatos e os instrumentos relevantes para emitir uma opinião; se erra, então […]
Um leitor ou outro reclamam quando, às vezes, escrevo textos na linha: “Eu não falei?” É chato? Huuummm… Pois é. Ocorre o seguinte: quem faz análise a partir de alguns dados pode errar ou acertar. Se acerta, é sinal de que escolheu os fatos e os instrumentos relevantes para emitir uma opinião; se erra, então o contrário. No que diz respeito ao Egito, vou brincar aqui com uma frase de Groucho Marx, adaptando-a: “Vocês vão acreditar nas evidências ou nas esperanças dos otimistas?” Ou ainda: “Eu falei ou não falei?”
No dia 22, terça retrasada, publiquei aqui um texto intitulado “A nova revolução no Egito. Ou: Um país a cada dia menos laico” . Escrevi ali (em azul):
Insisto numa questão até agora ignorada. Qual é a razão da “segunda revolução egípcia”? Nova, não há nenhuma, a não ser a agitação que busca ter, obviamente, um impacto eleitoral. No começo, eram todos unidos contra Mubarak. Agora, todos unidos contra a Junta Militar – a tal “garantia” na cabeça oca da turma que cerca Obama. Depois das eleições, esse “todos” vai se desfazer em facções. Vamos ver quem leva. Tenho uma suposição…
Os partidos laicos entram na onda porque, na verdade, foram arrastados por ela. Não têm saída. Mas é evidente que essa “nova revolução” só beneficia os grupos que vão da “Irmandade Muçulmana” pra lá – quanto mais “pra lá”, mais religiosos.”
Então… Agora leiam o que informa a VEJA Online. Volto em seguida:
O Partido Liberdade e Justiça (PLJ), da Irmandade Muçulmana, e os salafistas do Al Nour lideram os resultados parciais após os dois primeiros dias de votação das eleições legislativas no Egito, informou a imprensa egípcia nesta quarta-feira. Os primeiros resultados oficiais serão divulgados somente amanhã, mas o jornal estatal Al-Ahram afirma que os indícios preliminares demonstram o avanço do PLJ e do Al Nour em seis das nove províncias nas quais foi realizada a votação.
O jornal destaca em sua página da internet que em Alexandria (norte) o grupo político da Irmandade Muçulmana conseguiu 41% dos votos até o momento; o Al Nour conseguiu 24%, e o liberal Bloco Egípcio, 18%. Entretanto, a publicação não detalha o percentual de votos que já teriam sido apurados. O presidente da Agência Central de Mobilização Pública e Estatística estima que a participação nos dois dias de votação, realizada na segunda e na terça-feira, ultrapassará 85%. Em declarações à agência oficial Mena, ele acrescentou que o número de eleitores ultrapassou todas as previsões na fase inicial das eleições, as primeiras da era pós-Mubarak.
(…)
O pleito para a escolha dos integrantes da Assembleia do Povo (câmara baixa) é realizado em três fases – separadas por regiões do país e cada uma delas em dois turnos -, e será encerrado em janeiro, quando serão realizadas as eleições para a Shura (câmara alta). As eleições parlamentares são as primeiras desde a renúncia de Hosni Mubarak, ocorrida em fevereiro, quando o poder foi assumido pela Junta Militar.
Voltei
Na segunda, noticiei que membros da Irmandade Muçulmana se espalhavam pelas cidades em que havia votação de laptop nas mãos para “ajudar os eleitores”. Cada um recebia uma filipeta impressa com os candidatos do PLJ. A Irmandade, tratada como “moderada” pela imprensa ocidental, defende um governo regido pelas leis islâmicas — as “moderadas”, claro, claro! Por enquanto, vai ficando em segundo lugar um partido também religioso, só que radical. A ser uma tendência, os ditos liberais e leigos podem tomar uma lavada. Quem está surpreso?
No dia 21 de junho, escrevi aqui um texto que gerou alguns protestos. Segundo alguns, eu estou sendo preconceituoso, apocalíptico etc. Então tá. O título do tal artigo é este: “No Egito, Gramsci é relido à luz de Alá”. Lê-se lá (em azul):
Eu diria que a Irmandade é, hoje, uma espécie de Gramsci relido pelos fiéis de Alá. O que quero dizer com isso? O comunista italiano é o grande teórico da construção da hegemonia política por intermédio da guerra de valores e da ocupação das fissuras do poder por aqueles que querem destruí-lo. É rigorosamente o que está fazendo a Irmandade nos países árabes. Só que o grupo não pretende a ditadura de um “laicismo moderno”; a turma quer mesmo é a ditadura da “teocracia reacionária”. Mas isso não será conquistado de repente.
A Irmandade conseguiu convencer o Ocidente de que os sucessivos levantes no mundo árabe querem uma democracia à moda ocidental, o que é uma piada. Há quem, de fato, o queira? Sim! Mas esses grupos laicos estão longe de comandar a “Primavera Árabe”.
Voltei
Eu sempre tenho esperança de que as pessoas leiam textos recorrendo aos instrumentos consagrados da interpretação. Se escrevo um “Eu diria que a Irmandade é uma espécie de Gramsci relido pelos fiéis de Alá“, resta evidente que estou fazendo uma associação de idéias, coisa comum no debate. Não estou afirmando que o grupo em questão seja gramsciano como quem segue uma cartilha, é claro! Referia-me a uma similaridade de método: a Irmandade islamiza primeiro os valores e as instâncias do estado; o poder vem depois. Aliás, um de seus líderes confessou claramente essa estratégia numa entrevista à VEJA. Os entusiastas da tal “Primavera Árabe” negam-se a ouvir até o que a Irmandade afirma sobre si mesma. É como se dissessem: “Ah, não! Isso eles dizem só para efeitos de propaganda; na prática, é outra coisa!”
Para encerrar esse particular, numa abordagem de alcance mais geral, há um outro texto que ofereço como referência Os fundamentalistas aprenderam que, com o discurso da moderação, terão os aviões de Obama para ajudá-los a chegar ao poder.
Risco de fraude
O sistema eleitoral do Egito é uma invenção do capeta, né? Permite todo tipo de fraude. Como sempre digo tudo, vamos lá: cria condições até para sacanear a provável vitória esmagadora dos partidos islâmicos. Uma eventual derrota esmagadora dos ditos “liberais e leigos” nesta primeira das três fases pode acender a luz vermelha, e alguém lá na cúpula militar pode até ter a idéia de dar uma “equilibrada” no jogo. Transparência suficiente para evitar que isso aconteça não existe.
O fato inequívoco é que aconteceu o que estava escrito no Crescente, embora, para variar, os “inteleliquituais” e a imprensa ocidentais se negassem, e se neguem ainda, a ver. O Egito já é hoje um país menos leigo do que antes da dita “Primavera”. E o caos na reta final da eleição — sem que houvesse qualquer razão nova que o explicasse — concorreu para fortalecer quem já era muito mais forte do que os outros: a Irmandade Muçulmana, que, atenção, NÃO QUER um governo laico no Egito.