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Dilma e Jô Soares: na democracia, absurdo é ficar calado diante dos descalabros

A pressão dos leitores é grande para que eu comente a entrevista que Dilma Rousseff concedeu a Jô Soares. Há um enorme inconformismo. No sábado, botei o pé na rua e comecei a ser abordado por conhecidos: “Você viu aquilo? Você viu que absurdo?”. Vamos lá. Vamos botar as coisas nos seus justos termos. Jô […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 01h09 - Publicado em 15 jun 2015, 07h23

A pressão dos leitores é grande para que eu comente a entrevista que Dilma Rousseff concedeu a Jô Soares. Há um enorme inconformismo. No sábado, botei o pé na rua e comecei a ser abordado por conhecidos: “Você viu aquilo? Você viu que absurdo?”. Vamos lá. Vamos botar as coisas nos seus justos termos.

Jô faz um talk show, não um programa jornalístico. Assim, seu compromisso com suas afinidades eletivas, com seu gosto pessoal, com suas idiossincrasias pode ser maior do que com a precisão. É evidente que ele tinha um roteiro, pautado por uma leitura muito pessoal da realidade, e decidiu segui-lo. Em muitos momentos, a sua disposição de sair em defesa de Dilma se mostrou superior à dela própria em se defender.

Ele foi ainda muito pouco lisonjeiro, para empregar palavra suave, com a imprensa. Assim como não me arvoro em guardião da reputação de seu programa, não vou aqui tirar ares de ofendido em nome da corporação. Ele faça o que quiser. Eu vou me ocupar da questão objetiva. E, no caso, ela é estritamente técnica.

Logo no início do programa, Jô classifica de “absurda” a que chamou de “onda fora Dilma” e afirma que “na democracia, quando a pessoa é eleita, tem de se respeitar o voto”. Parece-me evidente que ele desconhece o conteúdo da Lei 1.079, que é a que define crime de responsabilidade. Parece evidente que ele desconhece os artigos 299 e 359, alíneas “a” e “c”, do Código Penal. Se os conhecesse, tomaria mais cuidado. Não é preciso fazer juízo exótico nenhum para concluir que essas leis foram atropeladas pela presidente — no primeiro caso, com os descalabros da Petrobras; no segundo, com as pedaladas fiscais.

Mas notem: a consideração acima embute um juízo de mérito, e é claro que, mesmo tomando conhecimento do conteúdo das leis, Jô poderia discordar e concluir: “Não creio que tenha havido nem crime de responsabilidade, num caso, nem crime contra as finanças públicas, no outro”. Sim. Eu sei conviver com a diferença e admito que o conjunto rende uma boa polêmica. O que estou dizendo com isso?

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Quando se faz um debate pautado pela lei, Jô Soares, não há “absurdo” nenhum! Ninguém foi à rua dizer “eu quero porque eu quero”. Ademais, a eleição é um valor absoluto para decidir quem está eleito, mas não é um valor absoluto para decidir se o governante fica no cargo. Ou Jô Soares considera ilegítima a deposição de Fernando Collor? “Ah, mas naquele caso, houve crime”, talvez ele pudesse objetar. É que muita gente séria e sensata avalia que, no caso de agora, também. Então onde está o absurdo?

Mas ainda falta
Mas isso ainda é o de menos. Nas democracias, pessoas vão às ruas com frequência pedir a deposição de governantes. É um direito. Assim como Jô tem o direito de ser contra. Os regimes parlamentaristas já deram a isso a devida resposta: se um governo se torna por demais impopular, o que costuma acarretar a perda de maioria no Congresso, ou se a crise no partido majoritário se mostra incontornável, o gabinete cai. E, Jô, trata-se de um governo… eleito! Houvesse alguma forma de “recall” no presidencialismo, alguém tem dúvida de que Dilma seria deposta? Acho que não.

Sim, pode-se dizer, o grande “recall” foi feito em 2014, com a reeleição. Acato o argumento. O chato é que Dilma não disse que iria dar choque de juros e de tarifas, cortar benefícios sociais, capar o orçamento, aprofundar a recessão… Ao contrário: ela atribuiu essas intenções a seus adversários, muito especialmente ao tucano Aécio Neves. E esta foi uma das grandes falhas da entrevista caso se tratasse de um programa jornalístico: é moral, é ético, é legítimo mentir de forma tão determinada para se reeleger? O governo que a maioria dos votantes endossou, e por margem estreita, não é esse.

Claro, o que vai acima é uma questão política, não jurídica. Por si, confere legitimidade — sim, Jô Soares! — ao “fora Dilma”, mas ainda não confere legalidade. Atenção! Refiro-me a legalidade para depor, não para cobrar a deposição, que isso está dado pelo Artigo 5º da Constituição, uma cláusula pétrea. A base legal que sustenta o “Fora Dilma” está na Lei 1.079 e nos Artigos 289 e 359, alíneas “a” e “c” do Código Penal. Jô já entrevistou com evidente simpatia o jurista Ives Gandra da Silva Martins, por exemplo. Talvez pudesse fazê-lo de novo.

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De toda sorte, reitero, ainda que estelionato não houvesse, e há; ainda que ilegalidades não houvesse, e estou entre que os avaliam que há, pedir “Fora Esse” ou “Fora Aquele” faz parte do jogo democrático, muito especialmente, Jô Soares, quando isso é feito sem o uso de aparelhos sindicais, sem o emprego de dinheiro público, sem a mobilização da máquina estatal e paraestatal.

Milhões de brasileiros gostariam, sem dúvida, de viver naquele país imaginário, retratado no programa. Mas me dispenso de entrar nessas minudências porque trato cotidianamente disso aqui. Uma coisa é certa: quando um povo percebe que está sendo roubado por uma máquina gigantesca e cínica; quando se dá conta de que foi engabelado por promessas eleitorais que não serão satisfeitas; quando se sente traído pelo discurso vitorioso nas urnas e quando, além de tudo isso, tem a ampará-lo a Constituição e as leis, gritar “Fora presidente” — seja este quem for — é, além de um direito, um dever.

Especialmente quando se faz isso sem agredir nem sequer uma isca dos patrimônios público e privado. Jô é um homem inteligente, de múltiplos talentos, de uma cultura geral rara no meio artístico. Não estou aqui contestando a sua opinião, embora pudesse fazê-lo, claro! Estou dizendo que ele precisa prestar mais atenção às leis, num debate que é também jurídico, e às virtudes da democracia, num debate que é também político.

Texto publicado originalmente às 2h43
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