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Reinaldo Azevedo

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As lágrimas decorosas de Fernando Henrique Cardoso

Algumas textos que li sobre a imensa dor que FHC deixou transparecer pela morte de Ruth Cardoso, sua parceira durante 60 anos, demonstram que o país vive uma espécie de transe — há alguns sinais de que pode estar saindo dele, mas ainda não estou certo disso. Vamos ver. Pela primeira vez, que eu me […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 19h17 - Publicado em 2 jul 2008, 07h05
Algumas textos que li sobre a imensa dor que FHC deixou transparecer pela morte de Ruth Cardoso, sua parceira durante 60 anos, demonstram que o país vive uma espécie de transe — há alguns sinais de que pode estar saindo dele, mas ainda não estou certo disso. Vamos ver.

Pela primeira vez, que eu me lembre, vimos o ex-presidente realmente emocionado em público. E, a julgar pela sua trajetória e pela estrita racionalidade com que enxerga o mundo e a política, assim foi porque não pôde viver a sua dor ao abrigo de olhos curiosos ou solidários. Se pudesse, ele certamente o faria. Praticamente obrigado a pronunciar ontem algumas palavras, só conseguiu agradecer aos brasileiros e deixar claro que mais não podia falar. E reitero: acompanhamos a sua tristeza pelas frestas do inevitável. Até o limite do possível, experimentou o sofrimento de modo privado.

Volto, então, aos textos que procuraram relatar a sua reação. Convido-os, se for o caso, a relê-los. Há sempre laivos de surpresa, como se seus autores se espantassem que também FHC possa ter sentimentos — que, enfim, seja capaz de se emocionar, como qualquer um de nós. Durante anos, a máquina petista de moer reputações — para mim, aquele abraço é um abraço é um abraço, e nada além disso —, infiltrada, como não poderia deixar de ser, também no jornalismo, criou a imagem do intelectual insensível, alheio às dores humanas, incapaz de sofrer ou de se comover. O nosso “homem sensível”, de fato sofrido e capaz de reconhecer os relevos humanos, bem, este homem sempre foi, e ainda é, Lula.

Nos poucos dias que separaram a vitória em 2002 da sua primeira diplomação, Lula certamente verteu mais lágrimas em público do que FHC em oito anos de poder. Exibiu-as, em cascata, na campanha eleitoral criada por Duda Mendonça. Em vez do choro furtivo do tucano, indisfarçável por força das circunstâncias, a cascata lacrimejante de Lula: borrascosa, acompanhada daquele discurso rococó que juntava e junta ainda, numa mistura exótica, um tanto de luta de classes e outro tanto de arrivismo ideológico nouveau riche. Enquanto um sempre economizou na dor, outro faz dumping de emoções pessoais.

É curioso. Os olhos com que se passou a ver o tucanismo — e, a rigor, as atuais oposições — são, na verdade, uma lente redutora: a petista. Querem um exemplo até banal, mas ilustrativo? Há pelo menos 10 anos o humorista filopetista José Simão, da Folha, faz o seu “antitucanês reloaded, a Missão”, declarando “morte ao tucanês”. Não sei de alguém ainda tem saco para quem se tornou funcionário da piada. E o que é “destucanar” a realidade? Corresponderia a chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome, como se tucanos estivessem condenados a eufemismos, à retórica que edulcora a realidade, à fala oblíqua. Já o “lulês”, não. Ele pode ser chulo, mas caminha rente ao chão, não com a cabeça das nuvens, alheia “ao povo”.

O que Simão faz como piada antiqüíssima, boa parte dos analistas repete como coisa séria. Observem aqueles que costumam falar dos anos do que chamam “ruína tucana”. Parece não ter havido nos dois mandatos de FHC nada de positivo. E não gostam em Lula é do que chamam a “continuidade” daquele modelo; a única virtude do petista seria a sua maior dedicação à causa social — ou seja: o Lula que chora, não o Lula que pondera; o Lula do bolsismo frenético, não o que, com percalços e defeitos, vá lá, fez a opção pelo equilíbrio das contas públicas. Eles gostam do Lula que “sente”, não do Lula que “pensa”.

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E o mal de FHC, num plano simbólico, era precisamente este: sempre pareceu pensar em excesso e sentir muito pouco. Daí que seu desconsolo, ainda que diante de uma tragédia familiar, da vida estritamente privada, tenha causado alguma surpresa. A muitos confortava a fantasia estúpida de que o presidente que não chorava no poder nem apelava a questões emocionais fosse mesmo um insensível, incapaz, bom tucano que é, de chamar dor de “dor”. Dele talvez se esperassem eufemismos, reações oblíquas, aquele cinismo que lhe atribuíam e que eu sempre considerei que tinha outro nome: DECORO — o mesmo que orientava a vida de Ruth Cardoso.

Observo que notei certa surpresa da imprensa também com o sofrimento explícito de José Serra — amigo pessoal de Ruth — e com o texto que leu na Missa de Sétimo Dia, nesta terça. Citava um belo poema de Manuel Bandeira por ocasião da morte de Mário de Andrade e tratava de dores irreparáveis. Também em torno deste há certa fantasia de que está sempre calculando o próximo passo, como se lhe fossem vedadas a dor profunda e a reação espontânea.

Lula parece ser o único político, sabe-se lá por quê, capaz de sentimentos genuínos. Ao menos é essa a construção da imprensa petista. Se bem se lembram, exaltou-se a sua generosidade e civilidade em ir ao velório de Ruth e abraçar FHC. Até o sofrimento do outro, por alguns instantes, na construção perturbada dessa gente, ele roubou. De fato, apontar a “generosidade” só faz sentido se considerarmos os quase 14 anos em que FHC tem-lhe servido de saco de pancadas.

As lágrimas decorosas de FHC só surpreendem alguns analistas porque há muita coisa na política que esta fora do lugar.

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