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Blog do jornalista Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura
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As imagens que fraudam a verdade. Ou: Fascistoides convertidos em heróis

O jornalismo brasileiro, especialmente as TVs, teve papel fundamental na construção da suposta “Primavera Brasileira”, sempre lembrando que a outra, a árabe, era, igualmente, uma invenção da imprensa ocidental, que parece acreditar que democracia é não mais do que um método ao qual se pode ou não aderir; como se fosse possível haver um regime […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 05h26 - Publicado em 8 set 2013, 07h19

O jornalismo brasileiro, especialmente as TVs, teve papel fundamental na construção da suposta “Primavera Brasileira”, sempre lembrando que a outra, a árabe, era, igualmente, uma invenção da imprensa ocidental, que parece acreditar que democracia é não mais do que um método ao qual se pode ou não aderir; como se fosse possível haver um regime democrático sem o reconhecimento da validade dos valores democráticos. É por isso que não se exporta democracia nem se a impõe pelas armas. A tentativa de ver no Brasil a emergência de uma consciência subterrânea, que teria decidido vir à luz em busca de seus direitos, é, por qualquer ângulo que se observe, ridícula. O fato de haver bons e justificados motivos para os protestos não anula o fato de que vivemos, no que concerne aos direitos políticos, uma democracia plena. Ela só não é melhor, de mais qualidade, porque a própria imprensa se deixa capturar pela ditadura de opinião — à esquerda, evidentemente. Mas, nesse caso, trata-se de uma sujeição voluntária, ainda que o governo federal tenha, sim, instrumentos para comprar e influenciar opiniões.

Se, contra tiranias, a violência acaba sendo uma consequência natural da resistência — o que não quer dizer que “libertadores” também não comentam atos abomináveis e injustificáveis —, a violência que se insurge contra as defesas do estado democrático é, necessariamente, perniciosa, maligna e tem de ser duramente combatida. Só golpistas, terroristas e vândalos, nos seus mais diversos matizes, entram em confronto com um regime garantidor de liberdades públicas e individuais.

E foi o que se viu no Brasil. Há, sim, táticas de terror em curso, mas ainda não articuladas o suficiente para merecer a denominação de terrorismo — embora métodos terroristas estejam sendo empregados. E campeia o mais escandaloso vandalismo, sob o silêncio cúmplice do governo federal, a inação dos governos estaduais e as evocações verdadeiramente épicas da imprensa, seja em textos — coisa de que tenho tratado amiúde —, seja em imagens, e passo a tratar desse segundo aspecto.

Lembro de ter redigido um texto no primeiro ano da faculdade, que despertou certo interesse do professor, justamente sobre fotojornalismo. Ainda que meu acento ideológico, aos 17 anos, fosse de esquerda, sustentei o ponto de vista de que fotos jornalísticas costumam ter um aspecto inevitavelmente falacioso. E o exemplo insuspeitado é a da garota vietnamita Kim Phuc, de autoria de Huynh Cong “Nick” Ut, que corre nua depois de sua aldeia ter sido atacada com napalm pelas forças americanas, em 1972. Phuc tem hoje 50 anos e mora no Canadá. Relembrem.

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Atenção! A foto é falaciosa em que sentido? É claro que aquela brutalidade aconteceu. O instante congelado, no entanto, já não é “a coisa”, mas um discurso sobre a coisa — no caso, virou um emblema de um clamor que corria o mundo, com um grande impacto na própria sociedade americana, contra a guerra. Mais do que revelar um horror, ela ilustrava o resultado de uma outra guerra, que os americanos já haviam perdido: a de propaganda. É irrelevante saber, diante do que se vê, de que tenebrosas ações eram capazes os comunistas ou a que extremos de crueldade poderiam apelar — e eles não economizaram. O jogo estava jogado. A foto de Phuc — vítima, não se duvide, de uma estupidez — serviu como uma sentença e decretou uma superioridade moral. Deixou de ser um flagrante de guerra para ser um estandarte. É evidente que tinha de ser anunciada ao mundo, mas é certo também que concorreu para o anonimato de todas as vítimas da guerrilha comunista e do regime que depois se instaurou. Assim, a despeito até das intenções do fotógrafo, a narrativa contida mesmo numa foto tão eloquente, como a de autoria de Huynh Cong “Nick” Ut, revela, mas também falseia a realidade; expõe, mas também omite; relata, mas também discursa e acaba fazendo escolhas.

Tenho visto nos jornais, revistas e sites fotos dos confrontos de rua entre black blocs (e outros arruaceiros, ainda que de cara limpa) e as Polícias Militares Brasil afora. Com raras exceções, não mentem menos dos que os vídeos do Mídia Ninja e dos jornalistas que agora deram para mimetizar a sua vigarice — até porque estão proibidos de se identificar nas manifestações, ou acabam apanhando dos iluministas que estão protestando. Quase sem exceção, os instantes flagrados simulam um confronto entre destemidos heróis e brutamontes dispostos a espancar, a jogar bombas, a dar porrada, a atirar balas de borracha.

Sim,  policiais cometem erros e exageros. É fato que as PMs do país inteiro precisam urgentemente debater novas táticas e técnicas de atuação em distúrbios, é óbvio que a violência policial, quando desnecessária ou imotivada, precisa ser reprimida e punida; é claro que os homens fardados precisam distinguir quem representa uma real ameaça de quem, mesmo estando no protesto, comporta-se de maneira pacífica. Mas não e menos patente que tanto os vídeos que ganham as TVs e as redes sociais como as fotos que supostamente retratam os conflitos se transformaram em meras peças de proselitismo político.

Calma lá! No Vietnã, afinal, a maior potência militar do mundo lutava contra uma guerrilha camponesa, ainda que muito bem armada e muito bem treinada. Escolher um lado para demônio e outro para vítima poderia não ser o melhor tributo que se prestava à inteligência, mas ainda atendia a alguns pressupostos humanistas. Mas e agora? A estética do confronto dos heróis contra os vilões, dos mocinhos contra os bandidos, não se justifica nem mesmo pela natural solidariedade que costumamos ter com os mais fracos. As fotos — e existem às pencas — em que black blocs surgem como aqueles que constituem a barreira humana e corajosa contra o avanço das forças da repressão são, com a devida vênia, ridículas. Passam, ademais, um atestado de ignorância do que está em curso e de estupidez política.

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Algumas que me enviaram chegam a ser editadas em preto e branco, o que lhes confere, assim, um aspecto verdadeiramente épico, como se trouxessem, em si, ecos de outras lutas — do eterno confronto entre oprimidos e opressores. Evocam as manifestações de rua no Brasil durante os primeiros anos do golpe, quando, com efeito, era preciso ter alguma coragem para enfrentar a ditadura. E eis que surge, então, a palavra: tratava-se de um confronto com um regime ditatorial.

Os policiais militares que estão nas ruas no Brasil não estão com o mandato de nenhum ditador. Ao contrário. Eles estão, na verdade, com o mandato dos milhões de brasileiros que participam regularmente de eleições democráticas. Seus respectivos chefes foram eleitos pelo povo. Os bandidos e os mocinhos dessa batalha estão, nas imagens capturadas, com papéis trocados. De novo: é fato que existe violência policial, e é necessário que seja contida. Mas os flagrantes, sejam em vídeo, sejam em fotos, que transformam as polícias em vilãs dos acontecimentos constituem um exercício de jornalismo-mentira. O trabalho jornalístico, assim, se perverte.

É certo que não estou aqui a sustentar que a violência policial não existe ou a defender que tais imagens sejam omitidas. O que estou a cobrar é que esses flagrantes não sirvam para omitir uma verdade escandalosamente clara: as forças que hoje enfrentam nas ruas as polícias, com raras exceções, representam, elas sim, o atraso, a violência gratuita, o autoritarismo, a depredação da ordem democrática. Por que, então, vejo aqueles brucutus convertidos em heróis?

Fotógrafos e cinegrafistas — com notáveis exceções — precisam esquecer os anos 60. O golpe militar completa 50 anos em 2014. O tempo passou. É preciso buscar uma nova estética que, nesse caso, coincide com uma nova ética: reconhecer que, numa democracia, os policiais nada mais são do que a democracia fardada. Quando deixam de cumprir a sua função e não atuam nos limites da lei, precisam ser denunciados — vale para qualquer um de nós. Chega de mistificação! Viva a profissão!

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