AOS TRÊS MINISTROS DO SUPREMO QUE AINDA NÃO VOTARAM: células-tronco embrionárias, a demonização do catolicismo e a ética reduzida ao puro pragmatismo
Ontem foi um bom dia para eu proclamar uma das minhas máximas: o verdadeiro negro do mundo é o macho, branco, pobre, heterossexual e… católico! Por que “verdadeiro negro”? Porque ainda é a forma mais fácil de ser oprimido — pelo menos até eu emplacar o meu movimento em defesa dos “indiodescendentes” brasileiros e expropriarmos […]
Ontem foi um bom dia para eu proclamar uma das minhas máximas: o verdadeiro negro do mundo é o macho, branco, pobre, heterossexual e… católico! Por que “verdadeiro negro”? Porque ainda é a forma mais fácil de ser oprimido — pelo menos até eu emplacar o meu movimento em defesa dos “indiodescendentes” brasileiros e expropriarmos a “aldeiola” — é a versão indígena do quilombola — de Ipanema. O católico está prestes a se tornar uma “minoria sociológica” no Brasil — embora seja uma esmagadora maioria numérica. Mas se nota, sobretudo em boa parte da imprensa, o óbvio: o que vem da Igreja Católica não serve e, necessariamente, oprime as liberdades. Um católico está no último degrau da cadeia alimentar ideológica — ou no primeiro, a depender de por onde se comece a olhá-la. O católico é sempre o primeiro indivíduo a virar ração dos predadores da cultura ocidental.
Por que digo isso? O ministro Carlos Alberto Direito foi o primeiro a fazer restrições à pesquisa com células-tronco embrionárias, ao menos na forma como ela está expressa na Lei de Biossegurança. Escrevo este texto antes de os jornais entrarem na Internet. Não vou mudá-lo depois. Mas intuo que repetirão o que as TVs não cansaram de martelar ao longo do dia: “Carlos Alberto Direito, ligado à Igreja Católica…” Ele não é “ligado” a coisa nenhuma. É católico, assim como outros, ministros ou não, são protestantes, budistas, agnósticos, ateus. A lembrança, claramente, buscava, ainda que de modo contido, deslegitimar o seu juízo, fazendo-o caudatário de uma “organização”, tratada quase como entidade secreta. E, no entanto, se estava falando daquela que é um dos pilares — não porque quero, mas porque é — da civilização ocidental.
Três outros ministros também fizeram restrições às pesquisas — Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso e Eros Grau. No caso deles, como nunca tiveram a “ousadia” ou o “topete” de se declarar crentes — nessa coisa tão exótica e estranha chamada Igreja Católica!!! —, não se procuraram razões escusas ou sub-reptícias para o voto. A determinação explícita, óbvia, escancarada, de demonizar a Igreja Católica ainda é maior do que a vontade de aprovar as pesquisas com células-tronco embrionárias. E, no entanto, eu lhes digo: ser católico não é ilegal, não é imoral e, creio, também não engorda: a gula é pecado.
A inveja que tenho dos sábios
Tenho algumas invejas nada agressivas, coisas leves mesmo: de quem sabe dirigir automóveis; de quem entende o jogo de beisebol; de quem anda em montanha russa… Sei que nunca farei nada disso. Só uma inveja realmente me corrói: a dos que estão certos de que a vida humana não começa na concepção. Invejo também a facilidade com que conseguem renunciar à lógica sem que se sintam flagrados numa falha intelectual. Explico-me.
Plante uma semente de laranja no útero de uma mulher, e, creio, o máximo que vai nascer ali é uma infecção. “Aquilo” — por ora, chamemos assim o embrião — que lá é depositado deve guardar as informações da espécie, ou não daria origem a um semelhante. “Aquilo”, para que frutifique (não emprego o verbo por acaso), precisa estar vivo. E ISSO NOS LEMBRA QUE AQUILO ADMITE PELO MENOS DOIS ESTADOS: VIVO E MORTO. Ninguém me acuse de estar dando “personalidade” àquilo, de estar fazendo vãs prosopopéias: até um pé de alface pode estar vivo ou morto, não é, senhores ministros? Acho que posso dar àquilo a nobreza que se dispensa a um pé de alface, não? Mas sigamos.
Se aquilo guarda todas as informações dos semelhantes de onde deriva, se aquilo se chama “embrião”, e se ele é um embrião humano, é preciso admitir que se está reivindicando a licença de, bem…, como dizer?, matar embriões humanos. Acho que não é, assim, tão chocante empregar para “aquilo” um verbo que cabe até às ervas daninhas: nós matamos ervas daninhas, afinal. Matamos até baratas. Logo, embriões também podem ser mortos — ainda que, à feição do ministro Ayres Brito, possamos preferir chamar aquilo de… sei lá, “aquilo”…
Essa tal vida humana
Acredito que a vida começa na concepção — e direi, adiante, por que isso, à diferença do que parece, nos protegeu ao longo da história e nos protege —, e se trata de uma posição bastante clara, de fácil compreensão. Sim, também é essa a opinião da Igreja Católica. Os cientistas e leigos favoráveis à pesquisa com embriões, obviamente, não podem concordar comigo ou com a Igreja — ou estariam admitindo a eliminação de vidas humanas para salvar… vidas humanas. Daí, então, o debate entre eles: “mas quando começa mesmo?” Bem, seja lá qual for o marco inicial que definam, indago: e que nome dar “àquilo” que vive — sim, é evidente que está vivo, ou não serve pra nada — entre a concepção e o que admitem ser o início da vida? Pré-vida? Semivida? Mais-ou-menos-vida? Quase-vida?
Se não têm uma resposta para a questão “quando começa a vida?’, preferem, igualmente, não dar nome nenhum “àquilo”. Aquilo é aquilo. E toda a argumentação se desloca, então, do que é uma questão ética para o universo do puro pragmatismo: “os embriões serão descartados mesmo; seu destino é o lixo”; “os embriões são considerados inviáveis depois de três anos” (há v��rios relatos demonstrando que não é assim): “os embriões não estão sendo produzidos para pesquisa; são a sobra do que é obtido para reprodução assistida”; “os casais não querem saber mais dos embriões”.
Observem, então, que o que requer uma definição ética se resolve apenas com respostas circunstanciais. Os quatro votos até agora favoráveis às pesquisas e contrários à ação de inconstitucionalidade fugiram da questão de princípio; dedicaram-se apenas às circunstâncias — à diferença dos quatro ministros que lhes fazem restrições: a estes, a questão de princípio interessou. Todo esse pragmatismo nos faz assim tanto bem?
De volta ao catolicismo
Volto à questão do catolicismo do ministro Direito, lembrado como uma “acusação”. Aquela periodização da história que opõe a Igreja Católica das trevas medievais às luzes que vieram antes (o helenismo) e que teriam vindo depois (o Iluminismo propriamente) é só uma tolice juvenil, que os professores de história insistem ainda hoje em inculcar nos estudantes. Boa parte das reservas à Igreja vem da suposição de que a religião tornou a vida da humanidade mais difícil; de que vida boa mesmo tinham os gregos e seu “antropocentrismo”, por exemplo — não é assim?
Na edição nº 1988 de VEJA, de 22 de dezembro de 2006, escrevi um longo texto intitulado “Somos todos cristãos”. A íntegra está aqui. Reproduzo um trecho:
“O sociólogo americano Rodney Stark sustenta que uma das raízes da expansão cristã é a caridade – elevada por Paulo à condição de primeira virtude. E a outra são as mulheres. Em The Rise of Christianity: a Sociologist Reconsiders History, Stark, professor de sociologia e religião comparada da Universidade de Washington, lembra que, por volta do ano 200, havia em Roma 131 homens para cada 100 mulheres e 140 para cada 100 na Itália, Ásia Menor e África. O infanticídio de meninas – porque meninas – e de meninos com deficiências era “moralmente aceitável e praticado em todas as classes”. Cristo e o cristianismo santificaram o corpo, fizeram-no bendito, porque morada da alma, cuja imortalidade já havia sido declarada pelos gregos. Cristo inventou o ser humano intransitivo, que não depende de nenhuma condição ou qualidade para integrar a irmandade universal. As mulheres, por razões até muito práticas, gostaram.
No casamento cristão, que é indissolúvel, as obrigações do marido, observa Stark, não são menores do que as das mulheres. A unidade da família é garantida com a proibição do divórcio, do incesto, da infidelidade conjugal, da poligamia e do aborto, a principal causa, então, da morte de mulheres em idade fértil. A pauta do feminismo radical se volta hoje contra as interdições cristãs que ajudaram a formar a família, a propagar a fé e a proteger as mulheres da morte e da sujeição.”
É impressionante que a média do pensamento que se quer crítico, que defende com tanta energia que a religião fique longe dos debates sobre a ciência, pense na Igreja Católica apenas como fonte de restrições e proibições. A instituição cometeu alguns desatinos ao longo da história (será que a ciência nunca cometeu nenhum?), mas o fato inegável é que a inviolabilidade da vida está entre as causas originais de seu fortalecimento, de sua expansão e de seu enraizamento nas camadas populares — especialmente, sim, as mais pobres. Querer transformar esse legado em nada mais do que obscurantismo é, vejam só, uma forma de obscurantismo. E uma burrice também, decorrente da falta de informação.
Concluo lembrando que outros embates virão pela frente — como o aborto de anencéfalos e, fatalmente, o aborto ele-mesmo. Considera-se a legalização dessas práticas um ato de liberdade, uma “modernização” da legislação. Temo, sim, pela violação de um princípio. Chegará o tempo em que definiremos, muito pragmaticamente, quais vidas merecem ser vividas — já que nos damos o direito de definir o que é ou não vida, ainda que se resista a dar um nome àquela “não-vida” que, se viva não fosse, de nada serviria?
Aos ministros Celso de Mello, Marco Aurélio de Mello e Gilmar Mendes, uma modestíssima advertência: cuidado com o que há de trevas no pensamento dos monopolistas das luzes.