A Parte e O Todo — Um debate vesgo e os nossos liberais: tão exóticos quanto os nossos socialistas
Um artigo de Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, no jornal Valor Econômico desta segunda dá conta da perdição em que se encontra o debate no Brasil. E não porque eu discorde de todos os seus argumentos. Concordo com boa parte deles. Para ler o seu texto na íntegra, Clique aqui. Mas acho que ele […]
Um artigo de Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, no jornal Valor Econômico desta segunda dá conta da perdição em que se encontra o debate no Brasil. E não porque eu discorde de todos os seus argumentos. Concordo com boa parte deles. Para ler o seu texto na íntegra, Clique aqui. Mas acho que ele acabou fazendo uma confusão danada.
Loyola reclama, com alguma razão, de críticas disparadas pelo tucano Geraldo Alckmin à política econômica. Por que digo “alguma” razão? Porque, até agora, elas têm um caráter um tanto errático. Vê-se claramente que não derivam de um conjunto de alternativas ou de saídas pensadas pelo PSDB. O ex-presidente do BC diz que a política macroeconômica de Lula é herança do governo FHC e estranha que ela seja alvo de críticas de tucanos.
Nesse ponto, as coisas começam a se complicar. Seria razoável que ele encontrasse uma explicação para que o risco Brasil, hoje, seja praticamente um décimo do que era em fins do 2002, as exportações, o dobro, mas os juros reais, praticamente os mesmos. A mesma taxa com o país à beira do abismo e com os tais fundamentos sólidos deve ser coisa única, bem nossa, feito berimbau (o berimbau é só nosso, certo?).
Ele até pode não gostar do jeito como proponho a questão e formulá-la de outra maneira. Mas a resposta continua necessária. Como ele mesmo reconhece, Lula pegou ventos favoráveis da economia internacional inéditos desde a década de 70. Parece ter-se aproveitado pouco da boa sorte.
Loyola diz por que o eleitor deve fazer ouvidos moucos à crítica à política macroeconômica. E faz um elenco dos motivos: “A atual conjuntura econômica é francamente favorável às pretensões eleitorais do presidente Lula. A inflação caiu, a renda real e o emprego estão em alta e o crédito, em expansão. Ademais, políticas de transferência de renda promovidas pelo governo federal beneficiam parcelas expressivas da sociedade.” Resumida a situação assim, não haveria mesmo muita escapatória, ainda que o candidato da oposição fizesse elogios rasgados à condução da política macroeconômica.
Observo que o país na pena de Loyola pode parecer melhor do que aquele vendido pelo próprio Lula. O ganho de renda se dá depois de perdas expressivas; o desemprego ainda está acima dos 10%; o crédito está transformando capacidade mínima de poupança em consumo; os investimentos são tímidos, e, como se lê na manchete de hoje do Estadão, a indústria começa a sentir os efeitos do real valorizado. O setor sempre antecipa problemas. Se, com ventos benfazejos como não existiam há 30 anos, ficamos nesse crescimento médio sofrível, equivalente aos dos anos FHC, que enfrentou um penca de crises, resta-nos o quê? Apelar ao Espírito Santo?
Confusão
Mas não é esse trecho do seu artigo o que mais me incomodou. Loyola aconselha Alckmin a deixar a economia em paz e propõe ao tucano que ataque aquela que seria, de fato, a agenda do atraso de Lula. Reproduzo a seguir, em itálico, trecho do seu artigo.
“Atiraria com maior precisão a oposição se criticasse a incoerente e claudicante atuação do governo petista nas políticas setoriais. Tal artilharia seria facilitada pela abundância de exemplos negativos. Citemos, entre eles, apenas alguns: a timorata e hiperativa política externa terceiro-mundista, fora de sintonia com os interesses econômicos brasileiros; as inúmeras recaídas autoritárias e estatizantes, como exemplificado no projeto de reforma do ensino superior; o desprezo absoluto da autonomia das agências reguladoras e o abuso de nomeações políticas para suas direções; a preferência pelo aumento das despesas com o funcionalismo e a previdência e assistência social, em detrimento da elevação do investimento público ou da redução da carga tributária; a ausência de iniciativas no campo da reforma trabalhista, exceto para reforçar o poder das centrais sindicais; a tímida defesa do direito de propriedade contra esbulhos praticados por pretensos movimentos sociais, alguns dos quais turbinados por generosas verbas públicas.”
Eu concordo rigorosamente com ele que, acima, há uma boa agenda. Mas Loyola acerta e erra em cheio ao mesmo tempo, embora não esteja sozinho. Está para ser provado que uma condução essencialmente diferente de qualquer um dos assuntos acima poderia implicar a desejável queda dos juros reais — e nós queremos que eles caiam, certo, Loyola? Mas esse não é o ponto. O economista integra um grupo de pessoas que não percebe — ou, em alguns casos, finge não perceber — que a, digamos, “agenda de mercado” seguida por Lula é o tributo que a virtude presta ao vício. Eu acrescentaria à lista de bobagens a agressão contínua às instituições, por exemplo.
Loyola repete, assim, um dos mais caros erros dos ditos liberais brasileiros — erro ou, sei lá, uma forma de “realismo”: supor que existam dois governos, ou um governo bifronte, que não se comunicam. Na prática, trabalha-se como uma ilusão, tolamente chamada de “conservadora” por aí, segundo a qual se pode fazer a gestão da política econômica ignorando-se seus aspectos políticos. Até parece, e os fatos já o provaram à farta, que ainda vivemos naqueles tempos em que Antonio Palocci era “o nosso homem” no mercado e na racionalidade, e José Dirceu, “o homem deles” na arquitetura de um Estado autoritário. Trata-se de duas manifestações de um mesmo conjunto.
Se me fosse dado aconselhar Alckmin e a frente PSDB-PFL, como faz Loyola, eu também lhes recomendaria que centrassem seus ataques no degenerescência do ambiente institucional, incluindo essas áreas que transitam entre a economia e a política. Mas não ignoraria jamais que as escolhas macroeconômicas de Lula fazem parte da mesma equação. Até porque, com elas, o governo do PT também elegeu ganhadores e perdedores.
E observo que resumir o Bolsa Família a “políticas de transferência de renda promovidas pelo governo federal [que] beneficiam parcelas expressivas da sociedade” é coisa um tanto modesta. De resto, eu implico com os que chamam a dita-cuja de política de “transferência de renda”. Trata-se de cevar a clientela da miséria. Mas este já e outro assunto.
Por alguma razão, o artigo de Loyola me remeteu a um outro, escrito por Maílson da Nóbrega, quando o PSDB escolheu Alckmin, e não José Serra, como candidato. Ele saudou a decisão como o encerramento de um ciclo da vida brasileira em que os políticos ousavam interferir na economia, como se esta fosse, de fato, uma realidade autônoma. A crítica de Alckmin pode nem ter sido a mais jeitosa, mas é fato que a sua fala parece ter fugido àquele roteiro em que os economistas e os mercados se ocupariam da economia, e os “brasileiros”, do resto.
O debate, visto pelo ângulo de Loyola, decreta, de saída um vencedor: o PT. Lula vai pagando os juros mais altos do mundo e recebendo, em troca, instituições esfrangalhadas. Às vezes, os nossos liberais conseguem ser mais exóticos do que os nossos socialistas.