Rosalía, The Who e mais: o flerte saboroso entre pop-rock e música erudita
Com orquestra e pose de diva, a espanhola torna-se a mais nova representante de um filão que já rendeu muitos sucessos
Ao entrar em casa, a cantora Rosalía abre as cortinas da sala. Assim que a luz ilumina o ambiente, músicos da Orquestra Impressione de Varsóvia acompanhados de um coral começam a tocar de forma frenética e imponente a canção Berghain, novo single da jovem espanhola de 33 anos, conhecida até aqui por baladas pop com toques de flamenco e reggaeton. No vídeo de promoção do lançamento, ela continua a executar tarefas domésticas e cotidianas, como passar a roupa e andar de ônibus, mas seguida de perto e de forma claustrofóbica pela multidão musical. As imagens surpreendentes por si só ganham corpo quando Rosalía abre a boca invocando um belíssimo canto lírico em alemão. Elementos de arte sacra no cenário reforçam o tom solene da produção que, pasmem, ganha ainda versos em espanhol, uma participação fantasiosa da islandesa Björk — através de um pássaro — e termina em um rap eletrônico assinado pelo artista experimental americano Yves Tumor. Faixa do novo álbum de Rosalía, Lux, a mistura rocambolesca funciona: além de angariar elogios para a cantora, Berghain chegou ao top 10 da parada mundial do Spotify e passou de 60 milhões de reproduções nas redes da artista em uma semana.
Ao flertar com a ópera, Rosalía se transformou na nova representante de um filão que tem uma tradição de grandes sucessos, unindo, por assim dizer, o sagrado e o profano. A mistura herege começou com a obra conceitual Tommy, do grupo inglês The Who. As músicas desse disco inovador narram a saga de um garoto cego, surdo e mudo que era campeão de fliperama jogando apenas por meio das vibrações na máquina. Outro grupo britânico, o Queen, foi responsável pelo acachapante hit Bohemian Rhapsody: a canção de seis minutos sem refrão é organizada em cinco segmentos e cheia de referências a trabalhos do cânone teatral, como O Barbeiro de Sevilha. Mais tarde, o vocalista Freddie Mercury realizou o grande sonho de sua vida, gravando um dueto com a cantora lírica Montserrat Caballé. A mistura chegou inclusive ao universo country, como comprovou o bem-sucedido dueto dentre John Denver e Plácido Domingo em Perhaps Love. No teatro musical, a mistura rendeu enormes sucessos nos anos 70 como o espetáculo Jesus Cristo Superstar, de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice.
Aos poucos, como mostra Rosalía, essa trilha vai sendo retomada. Beyoncé, por exemplo, estudou técnicas da ópera e canta a ária Caro Mio Ben no álbum Cowboy Carter. Ariana Grande exibe no filme Wicked os dotes líricos que seu trabalho de estrela pop esconde. Até Billie Eilish, conhecida por baladas introspectivas sussurradas, carrega no DNA uma bagagem do tipo: antes do estrelato, fez parte do coro infantil de uma montagem de Carmen em Los Angeles. No TikTok, aliás, há todo um movimento curioso de fãs da geração Z que transforma as faixas dessas cantoras da atualidade em versões operísticas. Na seara do rock pauleira, a influência do canto lírico é nítida: o que não faltam nesse campo são vocalistas caprichando na empostação e nas poses de barítonos ensandecidos.
Muitos críticos não levam a sério o cruzamento entre o pop e o erudito, dizendo que a mistura transforma em pastiche uma nobre arte surgida na Itália há quatro séculos. A ópera combina música, drama e rigor técnico. Trágicas ou cômicas, as obras são tão intensas e complexas que desafiaram os mais importantes compositores e cantores da história, de Amadeus Mozart a Giacomo Puccini. A influência do gênero é imensurável, mas tentar emulá-lo para gravações é uma tarefa que poucos querem enfrentar.
Formada na Escola Superior de Música de Catalunha, Rosalía topou o desafio. Ela pode não ser uma cantora de ópera, mas segura bem as pontas. No disco Lux, ela esbanja conhecimentos técnicos. Com dezoito faixas, o álbum é dividido em quatro movimentos, cantado em treze línguas e composto com base em diferentes santas católicas. Ela tece uma história pseudolinear que amarra etapas da canonização e encara o esoterismo mais como possibilidade de transcendência do que como doutrina. Na décima primeira faixa, La Yugular, por exemplo, canta em árabe e coopta a crença islâmica de que todos partiram de uma só alma. Sobra espaço até mesmo para um sensível fado, Memória, com a portuguesa Carminho. Já com Mio Cristo, diz ter orgulhado a avó fã de Pavarotti: “Para ela, música de verdade significa uma voz com formação clássica. Cresci pensando que um dia faria algo para deixá-la feliz”, confessou ao site NPR. Seu combustível principal, contudo, é o desejo de testar outros campos. “É necessário um outro jeito de fazer pop. É o que Björk e Kate Bush já provaram, e preciso acreditar que é o que faço, ou não estarei realizada”, pontuou. Beber nas fontes da música erudita representa o novo ato dela nessa direção.
Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2025, edição nº 2969
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