Um torturador, por sinal o único militar condenado pelo crime, não pode ser considerado “um herói” por ninguém, muito menos pelo presidente da República, tampouco “um homem de honra”. Foi Bolsonaro, repetidas vezes, que tratou o coronel do Exército Brilhante Ustra como herói. Ustra foi chamado de homem honrado pelo general Hamilton Mourão, vice-presidente.
Foi preciso que um jornalista inglês, a serviço da televisão alemã, entrevistasse Mourão para tirar a máscara que o general vestiu desde que se elegeu. Antes, Mourão era um general da linha dura, punido mais de uma vez por suas declarações antidemocráticas. Durante a campanha de 2018, falou em autogolpe, algo que poderia ocorrer depois da eleição de Bolsonaro, e dele mesmo.
A tortura de adversários da ditadura militar de 64 foi adotada como política de Estado, segundo admitiu Ernesto Geisel, o terceiro general-presidente de um ciclo de 21 anos do regime da farda, do choque elétrico, do pau-de-arara, da unha arrancada a alicate, do rato introduzido em vaginas e da cobra posta em cela para assombrar os seus ocupantes e não deixá-los dormir.
Há prova abundante de tudo isso, inclusive um HD com 43 documentos produzidos pela inteligência americana entre os anos 1967 e 1977 e entregue por Joe Biden, à época vice de Barack Obama, a presidente Dilma Rousseff. Biden, hoje, com 77 anos de idade, está a um passo de derrotar Donald Trump e de ser eleito presidente dos Estados Unidos no próximo dia 3 de novembro.
Geisel provou na pele quanto pode ser incômodo um presidente americano a pressionar para que se respeite os direitos humanos. O presidente Jimmy Carter foi uma pedra no sapato do governo do general. A mulher de Carter, Rosely, veio ao Brasil tomar satisfações em nome do marido. Eu era repórter no Recife quando ela reuniu-se com missionários americanos vítimas de tortura.
A situação mudou. O Brasil não tem mais presos políticos, só presos comuns torturados ante à indiferença da maior parte dos brasileiros. Biden, se eleito, vai incomodar Bolsonaro e Mourão por outro motivo: o desprezo ao meio ambiente. Biden já prometeu sanções econômicas contra o Brasil caso a Amazônia continue a ser destruída. É também o que prometem países europeus.
Boi-bombeiro, como sugeriu a ministra Tereza Cristina, da Agricultura, não é solução para baixar o fogo no Pantanal, nem na Amazônia. Se fosse, a expansão da pecuária nas duas regiões teria diminuído os focos de incêndios. O Brasil não está ok, como garantiu Mourão ao entrevistador da televisão alemã. Entrevista que foi um primor para quem quiser saber como se faz uma.
O que Mourão disse sobre Ustra foi de envergonhar e de dar nojo aos que ainda são capazes de sentir as duas coisas. “Ele foi meu comandante no final dos anos 70, e foi um homem de honra que respeitava os direitos humanos dos seus subordinados”, testemunhou o general. Jamais esteve em questão se Ustra comportou-se bem ou mal com seus subordinados.
É de supor que militar não tortura nem executa militar, a não ser em guerras. No caso de Ustra, a questão sempre foi o uso da tortura que ele fez pessoalmente contra presos políticos. E que avalizou. Ustra foi um torturador brutal, que se valeu de todos os meios para arrancar confissões ou simplesmente humilhar os prisioneiros aos seus cuidados. Não havia limites para ele.
Certa vez, nos porões do quartel-general do Exército, em São Paulo, ele suspendeu o suplício dos presos na antevéspera do Natal. Autorizou-os a tomar banho, cortar o cabelo, e deu-lhes roupas limpas. O dia 24 de dezembro foi de descanso para os presos e seus algozes. Perto da meia-noite, eles foram levados para um salão onde seria servida uma ceia de Natal.
Puderam comer peru, arroz, farofa com passas e beber refrigerantes. De repente, Ustra irrompeu no salão e foi de mesa em mesa desejar feliz Natal. No dia seguinte, a tortura recomeçou. Essa história me foi contada por uma mulher que participou da ceia. Ustra, o herói de Bolsonaro e o homem honrado de Mourão.