Patrono: comumente um infeliz que apoia com insolência e é pago com bajulação. Samuel Johnson, Um Dicionário da Língua Inglesa, 1775.
Mas doutor uma esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. Luiz Gonzaga e Zé Dantas, Vozes da Seca, 1963.
É o governo que mantém o pobre fraco
Não sei se existe alguém que acredite que o pobre seja pobre voluntariamente e quem não veja que a pobreza é também um negócio explorado como riqueza. Quem é religioso se tranquilize: o mal manifesto da vida não está em contradição com a bondade de Deus.
O fato de ser irrespondível dizer o que é viver bem para todas as pessoas não é defeito humano. Nem em família se consegue tal proeza. O certo é que a fé é um mistério, a esperança um ruído, o desejo promessa. E tudo o que acontece tem explicação e para mudar precisa deixar de acontecer. A opinião que expresso é na verdade súplica para que “a pesada couraça (da pobreza) ganhe asas, que seja curta a dor e eterna a alegria”.
Uma forma de ver as coisas é pensar que se não for para ter atenção às mudanças da realidade e honrar princípios de solidariedade e sustentabilidade não há necessidade de governo.
Progredir é uma razão cultivada que floresce se estiver enraizada em compromissos com princípios e instrução constante. Sem noção de liberdade e autoridade ninguém melhora verdadeiramente. Também é fato que políticas sociais não são assim tão boas para os pobres. Políticas sociais impulsionadas por maus costumes mantêm a sociedade imperfeita e são boas para governantes imediatistas. Em certo sentido é um consolo para a má consciência da autoridade.
O progresso não deve ter a pretensão de resolver todas as angústias humanas, mas cabe ao sistema público e quem se dedica institucionalmente a ajudar, lembrar e informar às pessoas sobre as possibilidades contidas no desenvolvimento social, cultural, técnico e econômico. Pois mesmo sendo a mente humana auto-bajulatória e com tendência de dar crédito ao que quer, especialmente ao que a gratifica no nível da sua necessidade e compreensão, todas as pessoas, e especialmente o governo, poderiam ser mais úteis do que conseguem ser.
A ideia da vulnerabilidade deveria mais se aplicar ao governo e sua virtude obliqua de converter necessidade social em dependência política, pois tal procedimento é um freio no entusiasmo de progredir. É o governo que mantém o pobre fraco.
Não é fácil ajudar tendo que estar atento à personalidade de cada um, não vendo indignidade na necessidade e assim rejeitar qualquer intenção que pretenda impor alteração na rotina de uma pessoa livre. Especialmente sabendo que selecionar alguém para proteger pode provocar abalo na alienação, otimismo ou certezas fáceis gerando desconfiança e antipatia.
Quem só recebe usufrui sem precisar desejar. O povo não está no centro do ringue e, desconfiado, põe suas mazelas em perspectiva. Como não busca nada além do que tem sente que a glória é um enigma do mundo e a honestidade uma piada considerando os preceitos morais mínimos de um estado democrático de direito.
Seu caráter vem do cimento endurecido pela vida. Se alguém lhe oferece algo inesperado e aceita, não vê nenhuma necessidade de justificação ou compromisso. Sabe que são passagens secretas que a raça dos governantes usa para depositar seus tesouros de popularidade. Não serve para assegurar o rompimento de limites dos selecionados, por mais que existam teorias e obras publicadas sobre o tema.
Corretagem política e clientelismo
A magia do conceito de inclusão social se desgastou pela limitada perspectiva cultural e humanista da política pública. O tema se tornou tão mal trabalhado que passou a funcionar errado sozinho. A grande confusão assume ares de verdade quando o ritual das pesquisas que apuram o sentimento popular para fins de análise de conjuntura, sem paciência para a rotina histórica de manipulação, se põe diante de um assistido e submete sua alma a escrutínio político, como se a política fosse tudo.
Todos sabem de antemão que quando o Estado faz assistencialismo não alarga horizontes. Faz corretagem política, uma pratica clientelista histórica e impune. Como ocorre agora em que, outra vez, mudam-se nomes de programas e volta-se à rotina dos eventos de gratificação, com presidentes sorrindo e crianças oferecidas por seus pais ao abraço impessoal nas cerimônias mais importantes do que as virtudes. Famílias crédulas imaginam que nunca se elevarão acima de sua condição.
O pobre sabe que para ser escolhido na nova lista é preciso apagar a memória da esperança desfeita. E assim parecer um número novo, encontrar honra no costume de ser outra vez encontrado, sem ser respeitado.
Bajulação eleitoral como moeda de troca
O que a sociedade talvez não perceba é que também é usada quando a pesquisa de opinião descreve a foto do momento. Sem revelar o filme da vida a pesquisa é propaganda e se torna o tempero que faltava na inclemência do poder quando busca autopreservação.
Mas há sutilezas em não captar o desejo do entrevistado em voar além da sua fronteira, negligenciar sua personalidade e a ironia da situação no mundo atual da propagação de boato. O que ocorre é que o beneficiado também usa a pesquisa para dizer ao governo que aceita a bondade da ajuda circunstancial e aproveita a pesquisa para pagar com a rotineira bajulação eleitoral.
Nesse carrossel de costumes hipócritas outros programas virão e o pobre aguarda algum que o ajude a conhecer a arte de viver por conta própria. Enfim, sem perceber que é parte da dança geral a pesquisa usa a opinião do pobre como força do governo. Ela não revela o futuro, sua função é fazer com que o presente se ramifique. Quem se amarra a ela nem sente nem vê o que de fato ocorre.
Dinheiro não é ajuda a quem é desobrigado de crescer.
Regras eleitorais de elegibilidade dos assistidos predominam sobre as regras constitucionais. Recursos discricionários de livre alocação, ou leis partidárias para clientelas, é o nome da pasta que abriga suas verbas nos escaninhos da fazenda pública e do parlamento.
No sistema internacional, através do patrocínio do Banco Mundial, a última síntese dos estudos diversos sobre a renda básica universal – UBI- Universal Basic Income – contém uma confissão, em linguagem às vezes inadequada, de um dos fatores do fracasso na eliminação de estigmas. Como o inglês é uma língua que funciona sozinha e o World Bank é um banco pronto à competição na faixa do mercado que elegeu, com todos os objetivos conjunturais de seus similares, vamos considerar irrelevante associar a entrega incondicional de dinheiro para todos a neurotransmissores ligados à vontade de comer. A analogia está lá com sabor de antropofagia.
Dito isso é possível ler algumas vezes no texto que a renda universal é uma oferta crocante e tangível para satisfazer o apetite por mudança e justiça social. Isto é, o hormônio monetário como regulador da igualdade. Ou seja, o mundo, para banqueiros sociais, visto pela ótica digestiva, é prisioneiro de processos metabólicos e a influência de estímulos parecidos aos psicogastrointestinais nas decisões políticas é humana, demasiadamente humana.
O mérito da ideia é sintetizado no fato de dispensar a elegibilidade para contornar erros de exclusão ou inclusão próprios de direcionamentos baseados em necessidades. A cobertura universal cobre o erro de aplicação e outras distorções. Sintetizando: vamos dar dinheiro para todos porque o Estado não consegue digerir bem o trato especial das carências das pessoas em desvantagem.
É possível observar a relevância do tema desde os anos 1960 quando mais de mil economistas e centenas de universidades lançaram um manifesto sobre a renda anual garantida. Além de ser possível listar mais de uma dezena de prêmios Nobel, da Economia e da Paz, tratarem da questão antes e depois de serem laureados.
A questão central permanece. Por comodidade política governos não querem atacar a desigualdade e a concentração de renda do país, uma das maiores do mundo. Este continua um campo para estudos e entrevistas acadêmicas de gente de boa índole. Querem é fluir num simpático movimento uniforme de ajuda descompromissada e manter a ineficácia que é não criar oportunidades ou incentivar as que aparecem entre as populações de baixa renda.
É um contrassenso falar em distribuir recursos para carentes sem enfrentar a questão da concentração de renda que os mantém parados. Dar dinheiro torna tudo menos discernível e simples e encobre a malícia que é não mudar o comportamento manipulador e alienado intrínseco às políticas governamentais. Continua tudo estático, que é não perguntar ao necessitado sobre o que sabe ou que pensa fazer da vida. Como vê o prazer ou desprazer, tristeza ou felicidade, sonho, capacidade e subjetividade.
Assim suportado, sem ter como partilhar os seus perigos e traumas, visto como quem não tem desejos a suprir, sem chão para anseios expressos, não é dado por infeliz. E o gozo de ofertar, que mantém acessa a gula da má política, aumenta nele a aflição por ter que logo agradecer, mesmo não tendo nada para comemorar se fosse considerado livre.
Esse tipo de política não deixa o pobre voar além de sua fronteira quando negligencia sua virtude e desejo pessoal. Por mais que queiram chamar de outra coisa, ofender quem critica dizendo que é porque não precisa, dizer que seu alcance muda a vida de uma pessoa carente na sociedade, etc, podemos dizer que não se trata de um fator real de mudança pois não assegura mobilidade social, nem produz circulação de classe. É ofertado como auxílio, não é política social.
Um fundo permanente captado sobre recursos naturais
De tanto tentar contornar as dificuldades de testar os incentivos surgiram tantas as possibilidades de dar cidadania econômica aos pobres que resumir todas em um único cheque somente serve para acirrar a competição por cadastros bancários e facilitar as coisas para quem não quer resolver a questão da disparidade social.
Alguns caminhos já testados com sucesso, com fins não governamentais ou lucrativos, são as iniciativas de natureza pública, social e coletiva de organizações voluntárias da sociedade civil – entidades filantrópicas, ongs, organizações privadas, fundações, arbitragens, condomínios, conciliações – vistas como concorrentes, e não parceiras, pela área tributária de governos com o conhecimento imperfeito do que as pessoas precisam e que merecem. O terceiro setor no Brasil é esmagado pela conspiração dos outros dois, o Estado e o Mercado.
Outros caminhos podem surgir. Por exemplo, financiar por ativos públicos um fundo permanente para os necessitados, investido em ações e captado sobre recursos naturais da União pertencentes ao povo parece mais adequado do que aumentar o imposto de renda ou sacar a descoberto do tesouro.
Tributar a inteligência artificial a partir de estágios elevados, definir sua responsabilidade social em relação aos seus parceiros, ou parar de elogiar o emprego como forma de sobreviver. Ações de transferência real de renda devem incluir acesso universal a serviços essenciais de escola e saúde, proteção integral na primeira infância, expectativa concreta de trabalho, cidadania patrimonial com a segurança de ter pelo menos uma casa, acesso a alguma forma de seguro, desoneração tributária por solidariedade social, economia e moeda social, etc.
São inúmeros caminhos que parecem um desincentivo para os governantes pararem de falar de renda única e bolsa-dinheiro.
Como o despontamento é certo para os que sofrem com a esperança perdida, o assistido deixa a miséria trabalhar para a acomodação sem vislumbrar caminhos para honras maiores. Esquecido em seu canto tem poucas chances de ver sua imaginação despertar sua habilidade. Como ninguém lhe oferece resistência respeitosa que possa estimular seu impulso para ultrapassar os obstáculos pelo esforço próprio e o conhecimento, não conhece verdadeiro ponto de apoio para sua impulsão. O que imaginam que ele é, desconhecendo o que ele sabe, se fixa nele como uma natureza de dependente e, então, seu horizonte é a terra para andar ou rastejar. Os homens, diferente das aves e dos peixes, que o fazem naturalmente, nascem para aprender a voar e a nadar.
E assim vivendo a vida em tão baixa altura passam a errada impressão de que não temem e nem se importam de descer mais ainda. Como nunca lhe perguntaram por seus sonhos todas as objeções a expressá-los são lhe atiradas primeiro como um árduo caminho para atingi-los. Só que ele sabe que para superar a realidade da sua vida ao mesmo tempo que tenta se elevar acima dela as coisas seriam facilitadas se fosse apresentado aos estímulos dentro da perspectiva de voar sobre seu mundo.
A energia que a oferta em forma de dinheiro tira dele não lhe serve por mais que um dia e é melhor aproveitada pelo que a oferecia. A força que se tira disso é o contraste entre um destino que não se queixa de não subir, servir de ponto de apoio a um provedor que usa o benefício como alavanca para não cair. Uma equação de um Arquimedes inconveniente.
O Estado estimula a alma do assistido a permanecer imóvel
As políticas sociais mais uma vez lhe mostravam seu lugar e como seria inconveniente ser esperado no mundo dos que o ajudavam. Reduzir a pessoa a uma parte pequena das suas necessidades primárias é uma forma de reconhecer como é difícil admitir as que nascem das alturas da fantasia e do desejo.
Se é para manter a distância do prazer do conhecimento e do orgulho da inteligência, pela influência de quem não consegue relativizar o poder do dinheiro como da vida o maior propósito, é difícil ver bons objetivos na grosseira concepção de ajuda que possuem os governantes. Sem lhes oferecer outra coisa capaz de dobrar o conhecimento e a habilidade para sobreviver só resta ao ajudado renovar a cada parcela recebida sua subordinação a um benfeitor de perspectivas tão limitadas.
Sem poder àquilo renunciar, ou estabelecer alguma forma de troca, ele sente o peso da certeza de quem não consegue nunca quebrar a regra do equilíbrio desigual entre as chances do doador e a sua como beneficiário. Assim, a política social é um destino que o obriga a continuar pobre. Pois como nada da sua vida é usado em seu benefício a rusticidade dos critérios informam para ele o feitio irregular da sua realidade.
Regras gerais de justiça que garantam sua liberdade de horizonte e participação social não são oferecidas. Na forma como são feitas são ofertas de submissão. Sua consequência política é a popularidade provisória do patrono público. Popularidade fisiológica, alcançada por iniquidade.
O fisiologismo é uma doutrina que se opõe à liberdade. Sua base é a lógica do desentendimento entre necessidade e benefício. Não produz nenhuma aquisição racional e o bem que faz é ilusório para o beneficiado por ver sua necessidade se converter em força política do benfeitor. É impossível contrabalançar esse poder irregular da autoridade com os princípios da justiça e da democracia.
Patrocinada pelo governo é mais um vício do que uma virtude, um freio no entusiasmo de progredir. Até no uso das palavras para dar nome aos programas existe um ardil. Se ontem reduziu o indivíduo à unidade mínima do estado social que é a família abandonando-o à própria sorte diante de outras instituições, hoje quer associá-lo à pátria como um slogan. Qualquer criança sente que é falso. No fundo o que se consegue é moldar uma sociedade de direitos precários para cidadãos tratados como simplórios.
Nossa configuração institucional e a vida social injusta que dela decorre permanece intocada.
Sem romper com essa reconstituição permanente do passado clientelista e autoritário, onde a devoção é mais forte do que a razão, os eventos que estão por vir, independentemente das circunstâncias com que foram eleitos os governantes, serão moldados por essa lei de ferro da oligarquia política.
As forças culturais que determinam esse atraso funcionam à revelia da vontade expressa nas eleições. Porque, se existem campanhas por mudança e delas surgem governantes populares não é por terem feito algo notável, mas por terem se deixado moldar pelas circunstâncias e com isso as reforçaram.
Enquanto a cerimônia em torno do discurso político pessoal for mais importante do a virtude pública refletida em contratos estáveis e formais de compromisso e responsabilidade social a forma clientelista de tratar os pobres permanecerá a disposição de cada um que se eleger. Quando o clientelismo só for encontrado em antiquários talvez possamos falar em verdadeira política social.
A desestatização da compaixão humana
A uniformidade da ajuda emergencial, a máquina viciada da verba humanitária, somente permite olhar de novo o que já se conhecia. A mesma lógica que leva ajuda desse tipo não consegue levar prosperidade, oportunidade e conhecimento pois o que a justifica está baseado na ignorância da política sobre os sentimentos dos que escolhe para receber.
As políticas sociais públicas podem ser peregrinações supersticiosas, opressivas ou razoáveis sobre a vida em sociedade, mas nunca devem ser consideradas libertadoras. A vida se regula melhor com a justiça e o compartilhamento de responsabilidade de membros livres da sociedade. Ver o Estado imaginar que ajuda alguém unilateralmente quando continua a pessoa na mesma condição que a oprime é dar à privação pessoal a ideia de destino de uma alma imóvel.
Preservar o tempo da assimetria que separa capital do trabalho, servo de senhor, patrão de empregado, sinaliza a continuidade da decadência política e da negligência igualitária. As pessoas são melhores vistas como elos de programas, projetos e negócios, sócios ou parceiros da criatividade produtiva e não partes subjugadas de processos históricos, sociais e produtivos arcaicos, subordinativos e concentradores.
Ao Estado deveria ser desestimulado fazer política social. Somente a sociedade deve ser recompensada por mudar o destino dos que sofrem e seríamos mais justos e felizes se ações coletivas removessem a inconveniência humana que é existir pessoas sem saída.
Quem ajudasse alguém a avançar nos seus sonhos deveria pagar menos tributos ao Estado e com a desestatização da compaixão humana pontes menos dispendiosas, cooperativas, empregadoras, comunitárias, produtivas, inovadoras, seriam lançadas nas mais diversas direções. E suavemente na reciprocidade, proteção, cuidado, estímulo e reverência pessoal, a gratidão pela mobilidade social não precisaria ser convertida em opressão por lealdade ao molestador político da pobreza.
Afinal manter a pobreza é uma forma de fazer o pobre só pensar no que lhe falta, não no que tem e nunca foi usado. Uma boa ação é aquela que envolve toda a sociedade produzindo o bem que atinge todas as suas partes.
Dependentes de um Estado de bem-estar aparente
O amor ao conhecimento é mais sincero sem a obrigatoriedade de estar de acordo com programas políticos. Especialmente hoje na sociedade de redes e vaidades vazias. As instituições da sociedade não são contaminadas por campanhas eleitorais por ganhos de popularidade e a pressão pela estabilidade das gratificações que concede a seus membros, como faz parte da vida no Estado. A cada direito adquirido corresponde um novo departamento, carreira, custos como se fosse normal essa espécie de sociedade que só consegue se preocupar com a vida humana quando há uma lei que a obriga a isso.
O desejo de ajudar não deve ser misturado ao desejo de ser observado. E a política não ajuda muito quando, para ser admirada, quer estar de acordo, ser popular, fazer-se aparecer. Seu mundo homogêneo e imerso na coabitação partidária vislumbrou o pobre como um protótipo para o engajamento. Mas como o vê de sua clausura institucional estatal é impossível combinar com alguma outra solidão existencial que conduza à reflexão igualitária.
Só quem se vê parte da mesma parte, sem demagogia ou preconceito, pode entender o olimpo dos esquecidos. Depois que a popularidade se tornou vulgaridade ficou pior. Pois a política fincou pé na receita e não na parceria, na necessidade, mais compreensível do que o direito. E focou seu papel na proteção, menos complexa do que o estímulo à produção, estudo ou trabalho.
Pensada assim de forma tão circunstancial não foi difícil acionar a esperteza de cada governo em cada época e o pobre passou a ser alistado à força para o exército dos dependentes do governante.
A política como profissão não exala a mesma gratificação do que é feito na sociedade como vocação, o prazer e a responsabilidade que instituições civis sentem por acrescentar algo à vida do outro. Há formas de autocontrole, vigilância e transparência que possam deter a maldade humana que se infiltra em todos os meios e fazer o mal não se sentir à vontade no meio dos que fazem o bem e responder pelas consequências do que apronta.
A desonestidade civil opera por clãs, seitas e máfias mais fáceis de identificar do que seus rivais poderosos que atuam nas instituições públicas que se auto protegem, sabotam, intrigam e se reproduzem. Assim, dependente do Estado, sem ser funcionário dele, nenhum cidadão está completamente livre.
Por isso seu interesse em oferecer a multidões, governo a governo, a admissão ao cativeiro da ajuda pública, ofertado ostensivamente, como quem humilha o outro com sua piedade. Quem não deixa de lado sua submissão não tem nenhuma chance de desfrutar das vantagens que a liberdade e a cortesia podem fornecer. Concebida com a contundência dos argumentos teóricos, as leis muitas vezes são rudes, pretenciosas e ignorantes quando dão valor exagerado ao poder do dinheiro.
A reação à essa simplificação é outro equívoco que produz nos seus opositores místicos e sonhadores a ilusão de encontrar realização na vida rústica e na simplicidade pastoral das pequenas comunidades rurais. Dois exageros que impedem ao país encontrar na verdade, progresso e na razão o caminho para o conhecimento que diminua a vulnerabilidade, sinalize para a mobilidade e permita, aí sim, se falar de inclusão social ou ação afirmativa transformadora.
Como o tempo dedicado aos seus problemas e dificuldades não se constitui num tempo de estabilidade, capaz de mudar suas vidas, a relação com seus benfeitores não se transforma em criatividade e confiança. Entra um, sai outro, cada um a seu tempo e estilo, e vendo assim favores tão incertos, ninguém os persuade de que aqueles benfeitores eram aliados defensores de uma vida melhor para eles.
Cada um cumpre seu destino sem considerar o que sua vida possa valer para o outro. Civilização e barbárie correspondem um ao outro.
Cada mês o prazer da novidade os surpreendia e agradecidos, sem entusiasmo, mas bem recebidos, alavancavam o varejo local e logo voltava à rotina a prevalecer sobre suas vidas. Já faz parte da mitologia da pobreza os estudos sobre o impacto econômico dos auxílios e, lateralmente, a conexão entre sistema de representação partidária e o padrão nacional de cooptação política. Nada parecido com um sistema de representação de interesses e participação capaz de formar comunidades políticas típicas de um Estado moderno.
Os mais sagazes não se envergonhavam do vício de receber suspeitando que a oferta não fosse resultado da virtude do Estado, mas do seu ressentimento por não poder tributar a pobreza. A contribuição é como um imposto às avessas para justificar a criação de outro e que servia de distração. Para ilustrar o argumento de que era destinado a quem já tinha perdido tanto e escapado de ganhar algum pouco.
A política social, comparada aos benefícios concedidos pela administração pública à riqueza em termos de urbanismo, saneamento, transporte, segurança, poluição, iluminação, etc, não se constitui em vantagens distribuídas à pobreza. É mais o retrato miserável de um Estado de bem-estar social aparente. De fato, seu papel é cooperar para manter a tendência geral do sistema injusto da vida em sociedade governada pelas leis da subordinação e da dependência das classes sociais consideradas não competitivas.
Clique na criança abraçada e a procure depois
Esqueça pistas analíticas, hipóteses exploratórias, papel histórico das instituições, patrimonialismo, impacto no comercio, altas teses, coeficiente de Gini. Deixe o espírito voar, a subjetividade penetrar seu interesse e despertar sua curiosidade. Confronte no tempo as imagens deslumbrantes da alegria popular na presença dos governantes anunciando benefícios.
Qualquer um. Fixe nas pessoas exaltadas da frente, ou nas mais emocionadas lá de trás. Clique na criança abraçada. Volte ao local e as procure. Encontrará os mesmos lugares, alguns mais degradados, pessoas outra vez sem nenhum valor, decepcionantes na alegria, compondo a realidade patética da vida sem hóspedes regulares e visitas respeitosas do mundo oficial. É pela pesquisa etnográfica, a fotografia e a antropologia que se deve observar o comportamento do governo nas áreas assistidas e perceber o verdadeiro alcance das políticas sociais.
Intervenção estatal, oferta pública, parcerias são formas clássicas de impulsionar a produção e reprodução do ambiente social para transformá-los em indicadores estatísticos de melhoria. Muitas vezes não passam de serviços ofertados pela intermediação política e seu desmascaramento dura um período de governo.
Nos três casos os critérios de concessão são pouco pressionados por monitoramento, avaliação e controle de sua efetividade. Como não envolve o controle popular podem ser ameaçados somente por reclamação, mas nada suficiente que evite se misturarem facilmente à demagogia, desperdício ou fraude.
Em todos os casos de erros prevalece o equívoco principal que é confundir política pública com meta governamental e desvincular política social de desenvolvimento humano integral. As políticas sociais são pragmáticas, imediatistas e visam abastecer o governo de um repertório de informações positivas necessárias ao jogo político. O ar de contentamento que exala dos estudos oficiais sobre a questão compensa a pouca emoção que tais investimentos produzem na história de seus beneficiários.
Traindo a esperança
O arranjo corporativo do Estado que sustenta a cultura política e a estrutura social da realidade brasileira encontra nas políticas sociais mais um lugar para se infiltrar. Nada parecido com a evolução de teorias de justiça e de direitos em gerações crescentes de autonomia, independência e autorrealização.
Quem do outro preenche o dia, como se do calendário alheio não tivesse qualquer uso, o torna infantil, vicioso ou com senso de alguma inferioridade. A maneira de satisfazer um desejo pode trair a esperança.
Muitas vezes afetos diminuem a autoridade e a capacidade de análise. Mas o que põe a negligência e o desânimo à vontade é o governante não se colocar no lugar dos que sofrem e, por filosofia, comodidade ou seguro de que não vai arcar com nenhuma consequência do que faz, tratá-los como multidão sem saída. Pois uma vez feita a oferta, a única coisa que resta é acreditar nela.
Nenhuma dessas políticas, na forma que são pensadas e executadas, permite ao pobre deixar de pensar que a sua condição é a condição da vida.
Nenhum governo deveria poder ser capaz de fazer da necessidade de alguém um jeito de enganá-la. A exploração da miséria é a maior das vulgaridades.
É difícil avaliar a sinceridade de uma política social que não exalta as qualidades pessoais de cada um que beneficia. Assim se explica que servindo para excitar o poder e o orgulho do governo não gera gratidão estável. A distribuição descuidada de dinheiro do orçamento público é daquele tipo de favor que os insensíveis conferem a quem desprezam. Não é direito, não contém nem regularidade nem esperança.
As políticas sociais como não estão lastreadas na integridade das decisões sólidas e partilhadas com todos, não estimulam o conhecimento das possibilidades econômicas e de segurança pessoal e psicológica da vida solidária. Para a realidade dos beneficiados não possuem as qualidades requeridas para a confiança no Estado.
A benevolência do governante conta para seu sucesso com a disponibilidade inevitável como é tratada a pessoa na miséria. A política social confina o pobre à sua região particular e libera o benefício sem lhe conferir a plenitude da luz que ilumina seu caminho e poderia dilatar o seu futuro.
Um filme repetido
O Brasil perdeu a novidade. Quem olha em redor só vê o que já viu um dia. O clientelismo, como conhecimento imperfeito do que é um cidadão, é um caminho sem objetivo. Por não cultivar a arte do respeito é o governo que mantem o pobre fraco.
Ambos sem horizonte cultural, respaldo jurídico ou eficácia econômica. Tratado como um sem opinião, e como matéria prima do fluxo de poder individual do governante, o pobre continua mercadoria cativa da vida política e social injusta, razão de seu destino econômico precário.
Paulo Delgado é sociólogo e escreve no Capital Político. É professor, sociólogo e consultor de empresas. Foi constituinte de 1988 e exerceu mandatos de deputado federal por Minas Gerais de 1986 a 2011. Articulista regular d’O Estado de São Paulo e assina a coluna de politica internacional dos Jornais Correio Braziliense e O Estado de Minas. É colaborador do Capital Político. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀