Na noite de 3 de abril de 2018 o Brasil vivia momentos de grande tensão. O Supremo Tribunal Federal poderia soltar Lula no dia seguinte, caso aceitasse um hábeas corpus impetrado por sua defesa. Sentindo o pulso dos quartéis, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, resolveu se antecipar com uma contundente declaração: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar os anseios de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e a democracia, bem como se mantém atento às suas missões constitucionais”. Mais tarde, admitiria ter agido no limite de sua função constitucional. Mas seu pronunciamento freou incursões militares que poderiam sair do escopo democrático.
Pouco mais de um ano depois, o mundo castrense volta a se agitar em função dos constantes ataques disparados por Olavo de Carvalho, respaldado pelo clã presidencial, contra as Forças Armadas e oficiais de alta patente. O incômodo com as baterias disparadas contra o general Santos Cruz atingiu o ápice, a ponto de o Alto Comando ter cobrado do presidente Jair Bolsonaro uma postura de defesa da instituição e de seus oficiais agredidos nas redes sociais.
Mais uma vez o general Villas Boas, a grande liderança militar da atualidade, apesar de estar na reserva, foi escalado para expressar publicamente o sentimento da caserna. E, como em abril do ano passado, evitar que as coisas fujam do controle. Se não o fizesse, em breve estaríamos assistindo manifestações em cascata de oficiais, ou, pior, de escalões intermediários da oficialidade da ativa.
O risco de quebra da disciplina e da hierarquia, pilares sobre as quais se estruturam todas as forças armadas do planeta, ficou afastado no curto prazo. Mas poderá voltar mais adiante se o presidente continuar fazendo cara de paisagem ao mesmo tempo que, por debaixo dos panos, insufla seus talibãs em guerra santa contra os militares.
Essa é a real razão do contra-ataque dos militares.
O ex-comandante do Exército, que hoje só não ocupa uma função de maior relevância em função de uma doença degenerativa, mirou no guru para dar um recado claro ao presidente e seus filhos.
Acostumados a raciocinar estrategicamente e a descortinar cenários, o Alto Comando e os ministros militares perceberam que estão sendo cortados em fatias, como salame. Hoje é Santos Cruz. Já foi o vice-presidente, Hamilton Mourão. Amanhã será Augusto Heleno, depois Fernando Azevedo e assim sucessivamente.
A cadeia de comando resolveu agir tanto em preservação da instituição como por um sentimento que lhes é caro: o espírito de camaradagem. E com um recado claro: mexeu com um, mexeu com todos.
Mandaram uma mensagem para o presidente. Ou ele para de arbitrar a guerra autofágica em favor de seus fundamentalistas ou pularão do barco em um determinado momento. Só ainda não o fizeram porque não são dados a rompantes e sabem que a saída teria consequências imprevisíveis.
Mas pode chegar a hora de avaliar se não é o caso de, mais uma vez, efetivar um movimento de volta ao quartéis para preservar as Forças Armadas. Essa hipótese é pedra cantada se Bolsonaro levar às últimas consequências a “revolução conservadora e permanente” do olavismo.
Para complicar mais ainda, o presidente azedou o almoço que teve nessa terça com o alto comando militar ao anunciar um corte de 43% no orçamento das Forças Armadas. Como disse um general que participou do regabofe, ”nem o PT chegou a tanto”.
O contra-ataque dos militares foi uma manobra tática e está longe de ser a batalha final entre “pragmáticos” e ”ideológicos”. Se a reação de Villa Boas é uma manifestação de bom senso, não deixa de ser uma demonstração daquilo que se temia tanto: a politização chegou aos quartéis.
Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo