Na Sexta-feira Santa, enquanto o Brasil contava mais de mil mortos pela Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro chocava o país ao dar a mão a uma idosa depois de esfregar o nariz no antebraço, próximo ao pulso. Voltava às ruas não só pela birra de desobedecer às recomendações de seu ministro da Saúde, mas principalmente para acirrar o confronto com o seu desafeto-mor João Doria, que no dia anterior ameaçara prender quem violar a regra de isolamento.
Erros abissais de ambos.
O governador paulista, que em 2018 surfou na popularidade de Bolsonaro para se eleger, viu na incapacidade do presidente de lidar com a pandemia o cavalo arreado que tanto os políticos almejam. Montou. Mas depois de saltar com sucesso alguns obstáculos está prestes a tomar um tombo feio.
Assim como Bolsonaro não pode desfazer unilateralmente as determinações de isolamento tomadas por governadores e prefeitos, tema já analisado pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes, Doria não pode lançar na cadeia quem desrespeitar a quarentena.
Não à toa, Bolsonaro lembrou o direito de ir e vir ao ser criticado pelos passeios matinais em Brasília. A não ser em estado de exceção, ninguém pode cassar esse direito, embora ao exercê-lo contra tudo o que a ciência dita, o presidente coloque pessoas em risco de vida e escancare o descaso que tem por elas.
Ainda que alguns juristas defendam a competência legal do governador de mandar prender, um decreto para tal é polêmico e, na prática, criaria uma situação surreal: lotaria delegacias e ampliaria o contágio que se quer deter com o isolamento.
Doria vinha tendo um comportamento irrepreensível. Um exemplo de liderança centrada versus um presidente obtuso que insistia em tratar a peste como “gripezinha”, “resfriadinho”.
Enquanto Bolsonaro aprofundava-se no negacionismo, perdendo credibilidade e pontos de popularidade, Doria cresceu. Arregimentou um grupo técnico de qualidade indiscutível, montou um modelo de isolamento invejável, implantado gradativamente a partir do dia 16 de março. O anúncio da suspensão das aulas foi feito com uma semana de antecedência para que as famílias se preparassem, e, paralelamente, criou uma rede de amparo social e à saúde. Tudo seguindo os preceitos da Organização Mundial da Saúde e de acordo com o ministro Luiz Henrique Mandetta.
Encarnando a razão contra a incendiária bipolaridade do presidente que nada comanda, a não ser showzinhos para a plateia de fãs no portão do Palácio da Alvorada, Doria não precisava exacerbar. Bastaria continuar na sua correta pregação, diária e didática, sobre a necessidade de as pessoas ficarem em casa. No máximo, acenar com multa para os desrespeitosos. Ultrapassou limites ao falar em prender desobedientes, dando munição para quem já havia se autoabatido.
Talvez o maior erro seja imaginar que as preferências eleitorais se moldam no decorrer da crise. Ninguém em sã consciência tem ideia de como será o próximo mês, quanto mais 2022.
Doria ocupa uma posição confortável. Sua pretensão é a de se firmar como o defensor da vida acima de tudo. Mas governa o Estado epicentro da endemia no país. Mesmo se continuar a fazer tudo certo – e prender gente está longe disso -, São Paulo terá números recordes de doentes e mortos. Se relaxar, amontoará corpos como a Espanha, a Itália e os Estados Unidos. Quadros dantescos, incapazes de gerar dividendos eleitorais.
Bolsonaro, que pressupunha uma reeleição tranquila a partir de bons indicadores econômicos (resultados que não conseguiu começar a entregar antes mesmo do coronavírus), sabe que no final de seu mandato, se chegar até lá, terá nas mãos um país em frangalhos. Quer porque quer pôr o dinheiro para girar ainda que isso acelere a pane no atendimento à saúde e, consequentemente, custe mais vidas.
Transgressor por natureza, Bolsonaro tem testado limites. Todos os dias manda seu ministro da Saúde às favas, desrespeita todas as regras. Irresponsavelmente, incita as pessoas a ir às ruas. Está doidinho para ver Doria fazer a primeira prisão por violação ao isolamento. Ganharia assim um parceiro na insensatez.
Mary Zaidan é jornalista