
Em disputas políticas encaixar a narrativa desejada é mais ou menos como encaixar a pegada no quimono do oponente no judô: meio caminho andado para deixar o adversário de costas no chão. E na política um ippon vale tanto quanto no tatame.
Mas a política tem especificidades. A narrativa bem encaixada exige não ser percebida como narrativa, mas tradução única e fiel da realidade. Melhor ainda se a transição entre narrativas contraditórias acontece imperceptivelmente.
Por exemplo, a narrativa dominante do momento conta que o governo Bolsonaro se divide entre ideológicos e pragmáticos. Estes vêm encaixando melhor a pegada no quimono adversário do que aqueles, e estão em certa vantagem.
Mas quando foi mesmo que a luta contra a chamada velha política e o chamado fisiologismo perdeu de repente protagonismo em favor da ética da responsabilidade?
E depois ainda dizem que o presidente é ruim de jogo. Será? Veja você que ele deixou para ceder espaço político-orçamentário quando isso está sendo quase implorado pelo establishment, em nome da centralidade da sacrossanta reforma da previdência social.
Bolsonaro vai cometer o que a opinião pública chama fisiologismo, mas o custo político será quase zero. Ponto. Significa sem turbulências? De jeito nenhum. A turma do PSL, por exemplo, parece inconsolável por não ter como governar sozinha.
Ou ocupar sozinha os cargos apetitosos.
Acontece que o establishment já percebeu: não é suficiente mandar o mercado pressionar o Congresso, e junto intimidar as excelências com a ameaça de aplicar a força policial. Aliás, quanto mais cedo o ministro da Justiça notar isso melhor (para ele).
O governo é meio neófito, mas leva jeito de ter entendido que governos só têm duas opções: governar ou colapsar. E é sempre bom lembrar: não se conhece poder que preferiu o suicídio político para manter a coerência na narrativa original.
Na Argentina, os liberais antes celebrados como paradigma de coerência agora congelam preços e controlam câmbio. Vale a velha regra do Império, adaptada: nada mais parecido com um heterodoxo que um ortodoxo politicamente pressionado.
Qual é o problema do presidente? Ele precisa fazer o caminho de volta da nova para a velha política sem perder substância, e mora aí a utilidade do chamado olavismo. Este serve para reafirmar a autenticidade. Como foram a política externa e as políticas sociais para Lula.
Bolsonaro tem três opções: 1) rompe com o círculo militar e com a dita velha política e naufraga amarrado ao leme da nau olavista, 2) rompe com o olavismo e aceita virar um pato manco tutelado com menos de seis meses de governo ou 3) segue o jogo.
Fica claro agora que a recentíssima ofensiva olavista-bolsonarista contra os generais tratou de colocar uma barreira de contenção ao namoro da elite com um certo sonho bonapartista-institucional-militar-chique.
Onde está o problema? As duas análises de conjuntura anteriores (em www.alon.jor.br) chamaram a atenção para o efeito político das dificuldades econômicas. Um governo de base gelatinosa e conflagrada fica mais vulnerável quando falta pão.
As projeções econômicas têm sofrido, mas não principalmente por causa de incerteza nas reformas. É porque contrai a demanda agregada. E quanto mais certeza de que vai haver reformas, mais o consumidor temerá o arrocho, e mais se retrairá. Pelo menos no curto prazo.
As projeções econômicas aceleraram o mergulho exatamente quando a reforma da previdência ganhou mais musculatura e deu sinais de que vai passar. O que está fazendo a economia sofrer não são as incertezas, é a certeza do dinheiro pouco.
O risco para o governo é alguma hora consolidar a narrativa de que a economia vai mal por causa da zorra política. Por enquanto as estatísticas mostram que o eleitorado está lançando a culpa na conta do PT. Mas alguma hora o centrismo hibernante vai dizer que a bagunça bolsonarista é a culpada.
Será uma narrativa conveniente, pois a opção seria admitir que a política econômica talvez não seja tão boa assim. E isso nem pensar.
Mais ou menos o que está acontecendo na Argentina. A narrativa preferida no péssimo momento eleitoral da direita é “a economia não colapsou por causa das políticas do Macri, mas pelo medo da volta da Cristina”. Será?
Nas receitas como a de Paulo Guedes, as coisas costumam piorar antes de melhorar. Não sei quanto de fato Bolsonaro curte o olavismo, mas o presidente parece acreditar que precisa do radicalismo e do histrionismo dele para atravessar o tempo das vacas magras.
(Alon Feuerwerker é analista político da FSB Comunicação)
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