A pergunta que aborrece o presidente
Se tivesse uma boa explicação para seus negócios esquisitos, Jair Bolsonaro certamente já a teria dado, sem recorrer à selvageria
Editorial de O Estado de S. Paulo (25/8/2020)
Não é nada fácil ser moderado quando se é Jair Bolsonaro. Para quem fez carreira política na base da ofensa explícita a adversários e ao decoro, interpretar um personagem discreto e ponderado como o que o presidente incorporou nas últimas semanas deve demandar um esforço quase sobre-humano. Mas a natureza, cedo ou tarde, se manifesta, e o presidente Bolsonaro voltou a ser quem sempre foi, ao dizer a um jornalista, no domingo passado, que estava com “vontade de encher a tua boca com uma porrada”. Tudo porque o repórter lhe havia feito uma pergunta incômoda.
Que pergunta foi essa, afinal, que causou reação tão truculenta de um presidente que, conforme a crônica política de Brasília, havia se metamorfoseado em democrata de uns dias para cá? O repórter, do jornal O Globo, perguntara a Bolsonaro que explicação ele tinha para os depósitos de R$ 89 mil em cheques na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, feitos por Fabrício Queiroz e pela mulher deste, Marta Aguiar.
Fabrício Queiroz, como se sabe, é o pivô do escândalo da “rachadinha”. Conforme investigações do Ministério Público que abrangem fatos de 2007 a 2018, funcionários do gabinete do hoje senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente e na época deputado estadual no Rio de Janeiro, devolviam parte do salário que recebiam. Quem recolhia o dinheiro era Fabrício Queiroz, também assessor de Flávio Bolsonaro e amigo de décadas da família do presidente.
“Rachadinha” é o nome que a literatura do baixo clero político deu à prática de alguns parlamentares de apropriar-se do salário de servidores comissionados, em geral gente que raramente comparece ao trabalho – os chamados “fantasmas”. Além de sua flagrante imoralidade, tal conduta caracteriza uma série de infrações, tais como peculato, concussão e improbidade administrativa.
No caso específico de Fabrício Queiroz – que está em prisão preventiva por conta do escândalo –, já se sabe que esse prestimoso assessor dos Bolsonaros pagou contas, fez depósitos e movimentou valores consideráveis em favor da família presidencial. Para o Ministério Público, há razões para crer que se trata de esquema de lavagem de dinheiro.
Uma dessas movimentações suspeitas teve como destinatária a hoje primeira-dama Michelle Bolsonaro. Segundo as investigações, Fabrício Queiroz e sua mulher, Marta Aguiar, depositaram na conta de Michelle vários cheques, com valores entre R$ 2 mil e R$ 3 mil, totalizando R$ 89 mil. Foi essa movimentação que atiçou a curiosidade do repórter que irritou Bolsonaro: afinal, por que Michelle Bolsonaro recebeu esses cheques de um suspeito de lavagem de dinheiro?
Sempre que trata do assunto, o presidente se aborrece. Como “explicação”, já disse que se tratava do pagamento de um empréstimo feito por ele a Queiroz, no valor de R$ 40 mil, e que coube à primeira-dama descontar os cheques porque não tinha tempo de ir ao banco. No final do ano passado, quando questionado por um repórter se tinha algum comprovante do tal empréstimo a Queiroz, Bolsonaro respondeu: “Ô rapaz, pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, tá certo?”.
O presidente Bolsonaro, por menos que goste, deve explicações ao País a respeito desse estranho caso. As que deu até agora foram insuficientes – para não dizer ofensivas à inteligência alheia. Em primeiro lugar, já se sabe que não há qualquer registro bancário do generoso empréstimo que Bolsonaro diz ter feito a Queiroz. E em segundo lugar o valor da “devolução” do suposto empréstimo bateu em quase R$ 90 mil, bem acima dos R$ 40 mil informados pelo presidente.
Bolsonaro escolheu ofender os repórteres que o questionam a respeito desses negócios esquisitos – ainda ontem, voltou a atacar jornalistas, chamando-os de “bundões” (covardes, no dialeto dos valentões). Se tivesse uma boa explicação, o presidente certamente já a teria dado, sem recorrer à selvageria. Como aparentemente não tem, faz o que sabe fazer melhor: parte para a intimidação. É inútil, pois a pergunta incômoda continuará a ser feita, até que haja uma resposta convincente – dada ou pelo presidente ou pela Justiça.