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Tortura chinesa: até a Apple bloqueia protestos de Hong Kong

Da gigante dos iPhones aos grandalhões do basquete, empresas americanas entram na fila para ceder ao aperto do regime comunista contra a ilha rebelde

Por Vilma Gryzinski
14 out 2019, 08h00

O futuro do mundo já está acontecendo bem diante dos nossos olhos. E não é bonito.

Enquanto jovens e não tão jovens nos países ocidentais acreditam que tudo depende das mudanças climáticas, muitos detentores do poder econômico já estão antenados com as mudanças geopolíticas.

E a mudança que realmente conta é a transformação da China numa superpotência global, com capacidade de aplicar métodos muito chineses a seus parceiros.

Confrontados com cortes de patrocínio, boicotes e outras ameaças, algumas das maiores empresas do mundo correram para se afastar da mais remota suspeita de simpatia pelos manifestantes que continuam a irritar o regime comunista com protestos em Hong Kong.

O caso que ganhou mais destaque foi o da NBA, a grande liga dos timões de basquete americano, hoje altamente dependente de ingressos de publicidade e de direitos de transmissão vindos da China.

A encrenca foi desencadeada quando Daryl Morey, diretor dos Rockets, de Houston, teve a ousadia de mandar um tuíte simpático os protestos: “Lutem pela liberdade. Apoiem Hong Kong”.

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Foi atropelado por vários fatos da vida. Um dos mais impressionantes é que pouca gente liga a mínima para os manifestantes de Hong Kong.

Como são contra o regime mezzo comunista, mezzo capitalista estatal, já hastearam as bandeiras americanas e britânica – justamente a antiga e malvada potência colonial – e cantaram o hino com o famoso refrão sobre  “the land of the free and the home of the brave”, são considerados de direita.

Um engano. Recentemente, manifestantes entoaram um slogan dirigido a Donald Trump.

“Ainda não estamos acabados”, cantaram, referindo-se à malemolência do presidente americano em relação a Hong Kong.

Interessado num acordo comercial com a China, Trump já disse que os protestos “refluíram” e que a situação “vai se resolver por si”.

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Apesar do esbarrão em Trump, entre os sempre mobilizados esquerdistas/progressistas/ambientalistas dos países ricos,  é mais fácil ver manifestações de apoio aos curdos, de intervenção internacional na Amazônia e de posturas variadas assumidas por esportistas americanos para desancar os Estados Unidos.

Incluindo os da NBA.

RENDIÇÃO INCONDICIONAL

Daryl Morey  saiu correndo atrás do prejuízo depois que a Associação Chinesa de Basquete cortou relações com os Rockets, um banco de Xangai cortou o patrocínio e a televisão estatal chinesa e a Tencent avisaram que não fariam mais a transmissão nem o streaming de seus jogos.

Sem contar a fervura nas redes chinesas e os protestos que começaram a pipocar na temporada de jogos dos Lakers  e Nets na China.

“Eu estava apenas manifestando um pensamento, baseado numa interpretação de um assunto muito complicado”, rastejou Morey. “Desde então, tive muitas oportunidades de ouvir e levar em consideração outras perspectivas.”

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Para reforçar, a NBA proibiu perguntas a seus jogadores em temporada na China. E até nos Estados Unidos foram expulsos torcedores com camisetas de apoio aos protestos em Hong Kong.

A rendição incondicional foi compartilhada.

Tim Cook, da Apple, cujos iPhones são usados em tantas manifestações pelos hongkongueses como velas na escuridão, explicou em detalhes por que mandou eliminar um aplicativo usado para acompanhar o deslocamento de policiais.

Estava sendo usado para “vitimizar indivíduos” e funcionários localizados sem presença policial próxima.

Nem precisava. Bastava mencionar o editorial do Diário do Povo acusando a Apple de propiciar “atos ilegais” e ajudar manifestantes a “promover mais violência”.

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Sem contar que os iPhones são fabricados na China, que também absorve 20% da produção, o terceiro maior mercado, depois dos Estados Unidos e Europa.

A Apple ainda deu o vexame de remover o aplicativo, restaurá-lo e depois eliminar de vez.

Mas pelo menos teve um farrapo de desculpa. Da mesma forma, o Google, por retirar um game que reproduzia os movimentos de um manifestante. É contra as regras.

Mais vexaminosa foi a joalheria Tiffany que postou e, rapidamente, tirou da rede uma foto banal: uma modelo chinesa com dois anéis na mão esquerda e outro na direita.

Para mostrar melhor a joia de diamantes cravados, a mão direita aparece estendida sobre  o olho.

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Imediatamente, a joalheria foi acusada de incentivar um gesto que ficou comum na temporada de protestos:  o uso de um curativo com tinta vermelha para simular o caso de uma jovem atingida no olho por bala de borracha.

E imediatamente a Tiffany entrou no jogo da penitência. Nem adiantou dizer que a foto tinha sido feita antes do começo dos protestos. Detalhe: tem 35 lojas na China continental.

Mais um: a própria Hong Kong, que é uma ilha, uma península e  mais uma faixinha de território na China propriamente dita, é o quarto maior mercado da rede.

Os negócios atualmente estão prejudicados, como tantos outros, pelos protestos.

Deixar que pelo menos uma parte da população da ilha superlotada fique revoltada com os transtornos até implorar pela intervenção é uma das táticas do regime comunista.

Não tem dado certo. O fogo dos protestos pode até refluir, mas depois reacende.

Tocado pela paixão da juventude, virou uma causa existencial, questão de vida ou morte. Ou pelo menos de escolha entre autoritarismo e democracia.

Comparativamente, os cidadãos de Honk Kong têm muito mais liberdades do que os demais chineses, protegidos por cláusulas do acordo assinado em 1997, quando a Grã-Bretanha tentou salvar algumas aparências ao devolver o território face a incontestável realidade geopolítica: uma potência em retração diante de outra em ascensão.

A ideia de que os habitantes de Hong Kong fossem se encher de orgulho patriótico por voltar à pátria mãe, sem falar nos bons negócios, não vingou. Pelo menos, não vingou plenamente.

Os cidadãos satisfeitos por fazer parte da superpotência a caminho de se tornar dominante, e ainda com um gostinho de vingança pelas memórias do passado, quando a ilha era um miserável entreposto colonial explorado pelos ingleses malvados, formam uma parte impossível de ser quantificada.

Mas contam e, principalmente, mandam. Os candidatos ao posto equivalente ao de primeiro-ministro são escolhidos por um conselho formado por 1 200 representantes. Indicados adivinhem por quem.

Os protestos que viraram um movimento pela democracia e até pela independência tiveram excepcional adesão.

A certa altura, cerca de dois milhões de pessoas foram para as ruas em sinal de apoio. Isso num território com sete milhões de habitantes.

Mas é claro que o núcleo duro, estudantes que se vestem de preto, vai radicalizando.

“CÃO CHINÊS”

Os protestos começaram sem atos violentos, contra um projeto de lei que permitia a extradição de hongkonguenses, privilegiados por um sistema judicial próprio, para a China do mundo real.

Vandalismo em estações do metrô e cafeterias da rede Starbucks (a filha do dono da franquia criticou os protestos) tornaram-sem comuns recentemente.

Também houve agressões isoladas contra “chineses”, embora seja difícil cravar o que é uma violência absurda por parte dos mais exaltados e o que é armação de agentes provocadores.

Note-se que a palavra “chineses” foi escrita entre aspas, mas implica em desdobramentos importantes.

A  única coisa que Daryl Morey acertou foi que é um assunto “muito complicado”.

Os hongkonguenses são da mesma etnia han, a dominante na China, mas têm uma identidade própria – e uma língua diferente – como cantoneses.

Até a região de Cantão – o nome português original, hoje Guangdong, a província onde as experiências de reforma econômica começaram – não é exatamente colocada no mesmo nível que Hong Kong.

Os chineses han do resto do país, que falam mandarim, consideram-se desprezados pelos cantoneses como culturalmente inferiores e submissos a um regime brutal.

Até as línguas são motivo de desavença. O mandarim é visto como a língua do comunismo e o cantonês, a da democracia.

Uma das coisas que mais provocou revolta nos continentais foi a acusação de que manifestantes de Hong Kong usaram a palavra “china”, exatamente como é pronunciada em português,  para se referir a eles.

Como tantos outros, o nome do país no resto do mundo veio através dos navegadores portugueses, provavelmente usando uma denominação proveniente do persa antigo ou até do sânscrito.

Em mandarim, o país do Centro, ou Império do Meio ou alguma variação, é mais ou menos pronunciado como Jong-guó.

Em si, a palavra China não tem nada de ofensivo. Mas “china” foi usado como uma designação humilhante pelos japoneses que invadiram o norte do país há 88 anos e praticaram atrocidades inomináveis.

Na versão mais execrável, era combinada a outro xingamento para significar “cão chinês”.

Milhões de chineses foram escravizados ou mortos de fome, exaustão, a tiros ou até decapitações. Como cães.

TREZENTOS MILHÕES

Algumas empresas ocidentais demonstram insensibilidade cultural, quando não ignorância.

A Dolce & Gabbana fez uma publicidade que parecia engraçadinha: uma modelo chinesa, linda e produzida com o luxo ostensivo da grife italiana, tentava comer espaguete e pizza com palitinhos.

Sofreu um baque nas vendas na China. O patriotismo, tão criticado pelas esquerdas quando é em países ocidentais, é forte, principalmente pelos extraordinários feitos dos chineses em sair da miséria, infligida por estrangeiros e pelo próprio regime, e ascender em tempo recorde à condição de superpotência.

O sentimento obviamente é explorado e manipulado pelo regime comunista, que se consagrou como vingador das humilhações do passado e grande defensor da nação chinesa.

Mas próprio conceito de ser chinês flutua.

Numa pesquisa feita nem junho no território administrado em regime especial, 53% dos habitantes  identificaram-se como hongkongueses. Só 12% se disseram “chineses de Hong Kong” e 11% “hongkongueses da China”.

Mais: 71% responderam “não” à pergunta que indagava se sentiam orgulho de ser cidadãos da China. A proporção chegou a 90% na faixa dos 18 aos 29 anos.

Pois é, a questão Hong Kong não vai ser resolvida de maneira simples. E a vida da NBA, e de tantas empresas que precisam escolher entre a moral ou a rendiçãos às imposições do regime comunista, não vai ficar mais fácil.

Imaginem que o maior problema anterior do basquete americano na China tinha sido em novembro de 2017, quando jogadores do time universitário da UCLA foram presos por furtar óculos de uma loja da Louis Vuitton em Xangai.

Donald Trump pediu e o governo acabou liberando os elementos.

O basquete é o esporte ocidental que mais “pegou” no país, especialmente pelas acrobacias dos fenomenais jogadores americanos.

Tem 300 milhões de praticantes, quase uma vez e meia a população do Brasil. A operação da NBA na China envolve 1,5 bilhão de dólares por ano.

E o regime chinês sabe exatamente qual a parte mais sensível dos americanos.

Money talks.

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