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Por Vilma Gryzinski
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Sair do Iraque é ruim para os Estados Unidos? Sim, mas…

É pior ainda para os iraquianos: agora ficam sob a influência incontestada do Irã, pode estourar outra guerra civil e o Estado Islâmico ganhar novo fôlego

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 7 jan 2020, 08h53 - Publicado em 7 jan 2020, 08h50

A agência Reuters fez uma reconstituição preciosa dos últimos movimentos de Qasem Soleimani.

Em meados de outubro, ele se encontrou com os chefes das milícias a seu serviço num casarão às margens do Tigre, com vista para a embaixada americana do outro lado do rio que atravessa Bagdá.

A situação estava feia. Iraquianos xiitas que sempre haviam venerado os “irmãos mais velhos” estavam nas ruas, protestando sem parar contra a influência do Irã e o governo local, simplesmente desastroso e totalmente montado pelo próprio Soleimani.

A estratégia do general era tipicamente ousada. Seus apaniguados locais foram instruídos a usar drones fornecidos pelo Irã para lançar mísseis contra bases americanas.

Ataques assim, mais sofisticados e precisos, inevitavelmente provocariam uma retaliação pesada.

A força da reação deixaria os iraquianos indignados – e menos dispostos a sair gritando “Fora, Irã”. Voltariam, mesmo não querendo muito, para a frente unida que Soleimani havia criado e queria manter.

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Será que o plano, relatado por dois participantes à agência, foi verdade mesmo?

Se foi, com certeza Soleimani atingiu o objetivo. Claro, pagou com a vida, sua e de seu protegido mais próximo, Abu Mahdi Al-Mohandis, o chefe da milícia Kataib Hezbolá através de quem o plano foi executado.

O roteiro parecia perfeito: ataque a uma base ocupada por militares americanos e iraquianos, com uma morte (um civil, não ex-militar, dos Estados Unidos); represália em massa contra os Hezbollah iraquianos, com 25 mortes.

Performance em volta da embaixada americana, com acesso estranhamente facilitado – a Zona Verde, onde os Estados Unidos transformaram sua embaixada numa fortaleza, fica na Zona Verde, uma ilha no Tigre com portões gradeados.

O protesto na embaixada foi fácil, violento e, estranhamente, minoritário. Não tinha mais do que algumas centenas de participantes, todos diretamente ligados às milícias cujo chefe real era Soleimani.

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Nada das massas habituais. Estas só apareceram quando Donald Trump, obrigado a responder ao assédio encenado à embaixada, escolheu a mais inesperada das opções na lista de represálias apresentada pelo Pentágono.

Soleimani facilitou, talvez embriagado pelo sucesso. Desembarcou no aeroporto de Bagdá sem esquema de segurança. Afinal, a cidade era ”sua”.

Os mísseis Helllfire carbonizaram, literalmente, esta ilusão.

Em compensação, poderão dar uma vitória post mortem a Soleimani.

O Congresso iraquiano, numa sessão à qual preferiram não comparecer deputados sunitas, cristãos e outros, votou pela saída dos cinco mil militares americanos do país.

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Ontem, houve confusão com a divulgação, precipitada ou atrapalhada, do comandante americano local anunciando que a retirada ia começar.

Só para lembrar: todas as forças americanas foram retiradas do Iraque pelo presidente Barack Obama.

Só voltaram, em número menor, quando a desestabilização interna piorou muito, culminando com a rápida e assustadora expansão territorial do Estado Islâmico.

O movimento ultrafundamentalista atraiu simpatizantes do mundo todo com as mais radicais das bandeiras e foi impulsionado pela guerra na Síria.

Mas seu cerne sempre foi o mesmo: iraquianos sunitas em guerra com o Ocidente como em geral e com os xiitas em particular.

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O que uma saída americana faz prever?

As milícias xiitas voltam a atormentar os sunitas, como têm feito desde que a queda de Saddam Hussein inverteu o equilíbrio de poder.

E os sunitas voltam ao radicalismo mais extremo como forma de resistência. E nenhum radicalismo é mais extremo do que o Estado Islâmico, mesmo em sua atual versão arrasada.

As divisões étnicas e religiosas do Iraque, um dos vários países artificiais criados no começo do século XX por Inglaterra e França, tornam-no praticamente inviável sem um ditador hediondo para manter todo mundo junto na base do chicote.

O maior trabalho dos americanos, depois da invasão que derrubou Saddam Hussein, ironicamente, foi atrair a colaboração das tribos sunitas que, transformadas na parte perdedora, haviam partido para a resistência.

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Muita lábia e muito dinheiro foram gastos por generais legendários como Jim Mattis (durou um ano como secretário da Defesa de Trump) e David Petraeus (autodestruiu-se com o caso com uma oficial bonitona quando já era diretor da CIA).

Transformaram-se, estranhamente, em protetores da “tribo” que haviam tirado do poder.

O objetivo estratégico dos generais era formar um país conciliado e minimamente viável, unindo sunitas, xiitas e curdos num projeto comum.

Enquanto não conseguiam isso, seus soldados eram constantemente atacados por grupos armados sunitas e xiitas.

Nessa guerra assimétrica, os xiitas se especializaram nas bombas de fabricação local enterradas debaixo de estradas, explodidas por celular assim que passava um comboio americano.

É por isso que 600 vidas americanas, fora milhares de mutilados, são colocadas diretamente na conta dos grupos treinados por Qasem Soleimani.

Quando não estavam explodindo soldados americanos, grupos sunitas e xiitas matavam-se entre si.

Liderados, em geral, com ex-militares do regime de Saddam, as milícias sunitas especializaram-se em carros bombas.

O martírio de civis xiitas durou vários anos. Mercados, mesquitas e até filas de padaria eram alvos constantes dos atentados hediondos e incontroláveis.

Voltar a uma situação de guerra civil não declarada seria terrível para os iraquianos.

Ver um renascimento do Estado Islâmico, pior ainda.

Para os Estados Unidos, é péssimo “perder” o Iraque.

Mesmo que muitos venham a alegar que é melhor deixar esse país maldito entregue a suas próprias forças destrutivas.

Por quê?

Primeiro, o destino das superpotências não permite que lavem as mãos e digam: danem-se.

Muito menos no Oriente Médio e menos ainda num país que seria imediatamente mais dominado ainda pelo Irã.

E sob o risco de ser incapaz de enfrentar um Estado Islâmico ressuscitado exatamente pela bronca que o domínio xiita provoca.

Um dos papéis de Qasem Soleimani era, como os generais americanos, manter numa frente relativamente unida contra o Estado Islâmico os componentes rivais do Iraque.

Foi criticado, internamente, por favorecer demais os xiitas e, dentre estes, apenas os seus apaniguados, alimentando assim o nacionalismo árabe.

Vale sempre lembrar que os iranianos são persas, com mais de um milênio e meio de rivalidade com os árabes, para ficar só na era muçulmana.

A morte de Soleimani pode unir o Iraque contra os Estados Unidos, mas não permanentemente.

O vento muda de lado, as areias do deserto acompanham e o Iraque volta sempre para sua situação, basicamente, inviável.

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