Presidente versus o próprio partido, declarações disparatadas, improviso
Acontece na Argentina e o motivo, claro, é a administração da crise provocada pela Covid, que recolocou parte do país em confinamento estrito
“Vamos controlar o cumprimento com as forças federais, não me importa se a Polícia da Cidade não quiser interferir”.
Assim falou Alberto Fernández ao decretar que a Área Metropolitana de Buenos Aires, o conglomerado urbano que concentra quase 40% da população argentina, retornava ao regime de confinamento mais rigoroso ainda do que o período da “quareterna”, a mais longa quarentena do mundo.
A novidade é o toque de recolher noturno e a mobilização do exército e da polícia federal para fiscalizar o cumprimento das regras.
Pelo modo como o presidente falou, pareceria que é um adversário político do chefe de governo de Buenos Aires. Na verdade, ele e Horacio Larreta são da mesma frente peronista.
Sem nenhum freio verbal, Fernández disse que as medidas tomadas de comum acordo para limitar o movimento noturno de bares e restaurantes simplesmente não estavam sendo acatadas. Por isso, a nova ordem “quem tomou fui eu e quem se encarrega dela sou eu”.
Não foi o único atrito. O ministro da Educação, Nicolás Trotta, saiu queimado depois de declarar que as escolas não fechariam de jeito nenhum. Fecharam. E o presidente ainda pôs a culpa nas “mães que se aglomeram” na saída das escolas e nas crianças que “brincam de trocar as máscaras”.
Larreta decidiu contestar no Supremo Tribunal o fechamento das escolas e engrossou o tom na questão das operações militares: “Rejeitamos totalmente a participação do exército e das forças federais nas ruas da cidades se isto não tiver sido coordenado como se deve e ajustado às leis vigentes”.
Peronistas em guerra entre si não é exatamente uma novidade. O próprio Alberto Fernández passou anos rompido com sua patrocinadora, Cristina Kirchner. Mas as divergências internas nunca tinham chegado a tal ponto no governo atual.
É claro que Alberto Fernández está sob uma pressão tremenda, como todos os governantes que não conseguem controlar a epidemia nem vacinar continuamente a população.
O stress é tão grande que comprou briga até com os profissionais de saúde, justamente celebrados como os combatentes mais aguerridos na guerra ao coronavírus, dizendo que tanto os médicos do serviço público quanto dos planos de saúde privado tinham “relaxado”.
Virou onda entre médicos postar fotos em seus locais de trabalho com a frase: “Aqui, relaxando”.
Os problemas da Argentina no combate à pandemia têm agravantes gravíssimos: o PIB nacional sofreu um rombo de 10% no ano passado e a projeção de inflação para este ano é de 45%. É muito próximo do descontrole e do mergulho do país em mais uma de suas crises agudas.
Com mais de 60% de aprovação pessoal e até 80% para as medidas emergenciais no início da pandemia, quando fechou o país inteiro e assumiu o papel de pai extremoso preocupado com a nação – um clássico do populismo -, hoje a situação se inverteu: 58% dos argentinos reprovam tanto o presidente quanto as iniciativas de combate à Covid.
“Ao fim de um ano, ele não é mais o mesmo. Isso se nota até no seu tom de contrariedade”, analisou o colunista Carlo Pagni no La Nación.
“Sofreu no campo sanitário uma perda de autoridade incalculável. A contrapartida dessa perda é o temor, que apareceu ontem à noite com toda a clareza, de que seja desobedecido”.
Pagni também registrou que a ministra da Saúde, Carla Vizzotti, depois de ser contrariada pelos fatos por ter dito que não haveria anúncios de novas medidas, “foi obrigada a balbuciar a notícia mais inconveniente para qualquer governante do planeta: a campanha de imunização, ao contrário do que deu a entender o presidente, está suspensa até que cheguem novas vacinas”.
Ao contrário de seu antagonista em Brasília, Alberto Fernández promoveu a compra de vacinas desde agosto do ano passado. Problemas de produção e negociações comprometidas criaram os obstáculos enfrentados agora.
Fernández chegou a colocar na Casa Rosada um cartaz com as palavras “Obrigado, Putin” depois que a Argentina recorreu até a Oliver Stone, o cineasta próximo ao presidente russo, para conseguir mais lotes da Sputnik V, a vacina que ele próprio tomou antes de ter uma versão branda da Covid.
Com o desmoronamento da imagem de administrador criterioso e de temperamento menos mercurial do que sua vice Cristina Kirchner, Alberto Fernández hoje enfrenta os seguintes elementos: exército nas ruas de Buenos Aires para controlar toque de recolher, vírus resistente, falta de vacinas, médicos injuriados, pais de alunos revoltados, ministros de seu próprio governo desautorizados e um político importante como Larreta em aberta rebelião. Fora os problemas estruturais.
Obviamente, quanto mais fraco ele fica, mais forte se torna Cristina Kirchner.
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