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Oposicionista envenenado? A longa tradição russa no ramo

Lênin iniciou o laboratório maligno como instituição de estado, mas as histórias ou suspeitas de morte por envenenamento vão de Tchaikovsky a Rasputin

Por Vilma Gryzinski 30 jul 2019, 14h51

Entrar e sair da cadeia faz parte da rotina de Alex Navalny.

Seguindo a heroica tradição russa, o oposicionista de furinho no queixo, bonito como um galã de cinema, normalmente nem se abala. Sai da cadeia como se tivesse acabado de fazer uma sauna.

Dessa vez, foi diferente. Postou uma foto com os olhos bem inchados, um dos sintomas do que disse ser uma possível tentativa de envenenamento.

Também tinha secreção nos olhos e erupção cutânea no rosto. O hospital ao qual foi levado disse que era uma alergia grave.

Tratado com corticoide, foi liberado para voltar para mais uma temporada em cana. Geralmente, ele pega penas de um mês.

A oposição a Vladimir Putin é relativamente pequena e concentrada nos círculos mais intelectuais de Moscou e São Petersburgo.

Obviamente, é dividida, inclusive sobre o papel de Alex Navalny, um defensor da democracia liberal e nacionalista que foi a favor da anexação da Crimeia – o suficiente para dar um nó na cabeça dos que sonham colocá-lo na categoria “sabujo da CIA”.

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O motivo dos últimos protestos, reprimidos na pancada, foi banal: a eleição para o equivalente à Câmara de Vereadores de Moscou.

É claro que num regime que faz apenas uma imitação de instituições democráticas, nada é pequeno demais para ser ignorado quando representa algum tipo à ordem dominante.

Foram mais de 1 400 presos, incluindo todos os candidatos a vereador da oposição.

Além do excessivo uso da força – um conceito muito rarefeito na Rússia –, a “alergia” de Navalny foi o que mais chamou a atenção.

Por que o regime de Putin se arriscaria a queimar o filme tentando envenenar um opositor conhecido e controlado, que dificilmente conseguirá colocar mais do que algumas dezenas de milhares de pessoas nas ruas – sem diminuir o caráter valoroso dessas manifestações?

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Em geral, a resposta é mais simples do que se imagina: porque pode, porque quer, porque já fez antes e vai continuar a fazer.

Alguém acharia uma boa ideia mandar dois agentes secretos à idílica Salisbury, no interior da Inglaterra, envenenar com Novichok um ex-espião russo aposentado?

Alguém na cúpula russa, bem no ápice, achou que sim. O prejuízo em imagem, relações diplomáticas, expulsões mútuas de espiões deve ter sido considerado pequeno.

Ruim mesmo, nessa ótica, foi Sergei Skripal ter escapado vivo.

BORGIA DO KREMLIN

Em 1921, Vladimir Lênin criou um laboratório de produtos tóxicos, evidentemente secreto, como arma extra para “combater os inimigos do poder soviético”.

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“Lênin denominou gabinete especial esse laboratório que ele dirigiu pessoalmente, na condição de presidente do soviete dos comissários do povo. Os colaboradores do gabinete receberam abertamente a tarefa de preparar e aperfeiçoar venenos destinados a matar inimigos do regime”, diz Arkadi Vaksberg no livro O Laboratório dos Venenos.

Para um homem que podia mandar dar um tiro na nuca, fuzilar, enforcar, queimar ou soterrar vivas centenas de milhares de pessoas, e o fez com entusiasmo, os venenos eram uma alternativa para o assassinato de inimigos políticos no exterior ou aliados internos cuja eliminação pedia métodos discretos.

Ironicamente, depois que ficou paralisado por uma sucessão de AVCs, preso a uma cadeira de rodas, sem poder falar, vendo a ascensão de um camarada em quem não confiava, Josef Stálin, Lênin pode ter encerrado sua teimosa insistência em continuar vivo com alguma coisinha de seu próprio laboratório secreto.

“Pode” porque não há provas, apenas declarações indiretas. Outra versão: Lênin teria pedido cianureto a Stálin porque não aguentava mais a vida vegetativa.

Como, se não falava? A versão foi contada por Nikolai Bukharin (executado por Stálin em 1938) e repetida por Trotski em 1940 no artigo intitulado O Super Borgia do Kremlin. Poucos dias depois, recebeu as picaretadas assassinas.

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A ideia, de Stálin, claro, de envenenar o inimigo-mór havia sido substituída por algo mais garantido. Persistem até hoje as suspeitas de que o filho de Trotski, Lev Sedov, foi envenenado em Paris. Assim como o filho de Maxim Gorki. E a viúva de Lênin, Nadejda Krupskaia.

A lista não acaba. A ideia de mortes por envenenamento é profundamente arraigada na psique coletiva russa. Qualquer czar que morresse novo, não abertamente assassinado, era dado como vítima das artes negras em pequenos frascos.

Como matar pais, maridos, filhos e até bebês não era alheia aos grandes do Kremlin, a boataria não acabava nunca.

BOA NOITE, RASPUTIN

Uma das suspeitas mais persistentes continua a cerca a morte de Tchaikovsky, o compositor fenomenal que tinha uma nada oculta – e nada difícil – vida de homossexual prolífico.

“Meu Deus, que criatura angelical, como eu gostaria de ser seu escravo, seu brinquedo, sua propriedade”, escreveu ele numa das cartas “secretas” sobre suas variadas atividades sentimentais e sexuais – uma das mais estranhas foi a paixão por uma mulher, a soprano francesa Désirée Artôt.

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As suspeitas de que o compositor teria sido induzido ao suicídio por envenenamento desafiaram a ampla cobertura da doença e morte dele, com sofrimentos lentos e horríveis, por cólera.

Subsistem duas correntes: Tchaikovsky suicidou-se por pressão do czar Alexandre III pois, se não o fizesse, seria levado a julgamento pelo caso escandaloso com o filho do embaixador espanhol.

Ou por indução de um “tribunal de honra” formado por ex-alunos da faculdade de direito, também para não ser exposto por um outro envolvimento heterodoxo.

O fato de que o czar venerava o compositor, além de ter livrado mais de um grão-duque de escândalos homossexuais, não interferiu na boataria.

O fascínio por mortes com venenos atingiu o ápice com Rasputin, o curandeiro e autoproclamado monge que mantinha a czarina Alexandra sob seu poder com artes do além para preservar a vida frágil do único herdeiro homem, o hemofílico Alexei.

Com a monarquia gravemente ameaçada pelos abusos, imaginários e reais, praticados por Rasputin, os príncipes que resolveram matá-lo famosamente recorreram a um arsenal completo.

O primeiro: chá com bolinhos envenenados com cianeto de potássio oferecidos pelo príncipe Felix Iusupov em seu palácio em São Petersburgo. Quando Rasputin pediu um Madeira, o vinho foi servido numa taça também previamente “preparada”.

No “Boa noite, Cinderela” mais famoso da história, Rasputin resistiu ao veneno – três taças –, a tiros e briga física. Só acabou quando os assassinos aristocratas o enrolaram numa colcha e jogaram no semicongelado rio Neva.

COBAIAS HUMANAS

O “laboratório de Lênin” foi reinstalado em 1937 na rua Varsanofievski, atrás do complexo da Lubianka, a prisão política que se transformou em metonímia do mais avassalador estado policial da história.

Dos porões da Lubianka vinha um estoque inesgotável de cobaias humanas para as experiências. Químicos e outros cientistas eles próprios presos nos ciclos intermináveis dos expurgos stalinistas continuavam a contribuir para as “pesquisas”.

Nada surpreendentemente, todos os monstros que chefiavam a máquina das polícias secretas eram loucos pela “cozinha do diabo”. E não houve monstro igual a Lavrenti Beria.

“A impunidade, a sensação de onipotência, a ausência de freios morais, próprias a toda organização criminosa e, finalmente, a impotência dos serviços secretos e dos órgãos diplomáticos ocidentais permitiram que os criminosos agissem sem temor e utilizassem seu arsenal de meios de destruição”, escreveu Vaksberg.

Como ex-agente da KGB, Putin retomou a tradição e a atitude desafiadora escandalosamente reveladas no envenenamento de Alexander Litvinenko, morto do uma dose de polônio-210 colocada no chá que tomou num hotel de Londres com um agente russo.

O rosto de Litvinenko, inchado pelos remédios que tentavam, inutilmente, combater a radiatividade letal do polônio, tornou-se um símbolo mundial da reativação do laboratório russo dos venenos.

Outro caso escandaloso foi revelado pelo rosto literalmente cinzento, desfigurado por cicatrizes de erupções, marcas do envenenamento por dioxina, de Viktor Yushchenko, o ucraniano que sobreviveu para ser eleito presidente anti-Kremlin.

Antes de ser assassinada no elevador de seu prédio, a jornalista Anna Politvskaia foi internada depois de tomar um chá no avião que deveria levá-la até Beslan, onde tentaria interferir no trágico sequestro das crianças de uma escola inteira.

Acordou num hospital com uma enfermeira dizendo “Querida, tentaram te envenenar”.

O oposicionista Vladimir Kara-Murza acredita que sobreviveu a duas tentativas de envenenamento, em 2015 e 2017. Foi hospitalizado nas duas ocasiões depois de começar a suar e vomitar, desmaiando. O pai dele, também oposicionista, morreu ontem.

Era muito ligado a Boris Nemtsov, físico e inimigo mortal de Vladimir Putin, na grande tradição russa dos cientistas dissidentes.

Nemtsov foi assassinado em 27 de fevereiro de 2015 com uma saraivada de balas pelas costas em plena rua, ao atravessar uma ponte em frente ao Kremlin.

Cinco chechenos foram julgados e condenados pelo crime, sem que nada fosse revelado sobre os mandantes.

Menos discretos, mas mais eficientes do que as poções malignas. Mas não se pode eliminar a hipótese que pelos menos alguns dos envenenamentos fracassados tenham sido avisos tóxicos.

Como se Alex Navalny não soubesse, o tempo todo, o que pode acontecer com ele.

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