O sem-charme Blinken: o homem que precisa manter o mundo em pé
Burocrata que deliberadamente não faz grandes gestos, o secretário de Estado americano tem um dos trabalhos mais difíceis do mundo
O que o leitor faria se precisasse apoiar Israel em seu direito legítimo à defesa e ao mesmo tempo preservar os caminhos de ajuda aos palestinos de Gaza? Negociar com alguns dos mais espertos – e brutais – atores políticos do Oriente Médio? Administrar os poderosos recursos dos Estados Unidos sem romper amarras com aliados complicados? Em suma, evitar a disseminação da guerra e preservar a ordem mundial tal como existe sob a hoje contestada hegemonia americana?
Antony Blinken, o homem que tem de fazer isso tudo, não é dado a grandes gestos. Não tem o perfil de outros secretários de Estado que se destacaram. Não quer ser presidente, com queria Hillary Clinton. Nem quer ser um chanceler de ferro, como Henry Kissinger. Dificilmente diria como seu antecessor famoso, hoje com 100 anos, que, “se não fosse pelo acidente de nascimento, provavelmente seria um antissemita”.
Blinken não esconde seu “acidente de nascimento”, como descendente de judeus húngaros, notavelmente bem-sucedidos nos Estados Unidos. Também conta a história de seu padrasto, Samuel Pisar, polonês enviado aos campos de morte que foi o único sobrevivente de uma escola que tinha 900 crianças judias.
Dificilmente protagonizaria uma cena como a retratada no filme Golda, cruelmente cancelado pela realidade.
“Sou americano, primeiro; secretário de Estado, segundo; judeu, terceiro”, diz Kissinger a Golda Meir quando discutem a ajuda americana a Israel na Guerra do Yom Kippur. A primeira-ministra responde que ele havia se esquecido de um detalhe: em hebraico, se lê da direita para a esquerda.
Em 1973, Golda queria de Kissinger algo viável, embora politicamente complicado: armas para resistir ao avanço dos exércitos árabes que haviam surpreendido Israel num momento de despreparo incrivelmente parecido com o que aconteceu em 7 de outubro.
Agora, Blinken tem de fornecer o inviável: o “dia seguinte” para Gaza, o que fazer com o território depois que a capacidade militar e administrativa do Hamas for degradada, como é o objetivo declarado de Israel.
Além de inviável nas condições que existem hoje, a opção é desanimadora. “Em algum momento, o que faria mais sentido seria uma Autoridade Palestina efetiva e revitalizada ter a jurisdição administrativa e, em algum ponto, de segurança sobre Gaza”, disse Blinken ao Senado americano.
Efetiva e revitalizada são dois adjetivos que não se aplicam ao governo de Mahmoud Abbas nas áreas da Cisjordânia onde a Autoridade Palestina tem autonomia. Sem contar a viabilidade: Hamas e AP já travaram até uma pequena guerra civil (o Hamas ganhou) e Abbas não tem a menor simpatia pelos rivais que o desprezam, mas assumir Gaza seria considerado uma traição inominável.
Detalhe que certamente Blinken não ignora: Abbas muito recentemente reincidiu no negacionismo que exibia na época de estudante na antiga União Soviética, quando chegou a escrever um livro contestando o Holocausto. “Dizem que Hitler matou os judeus porque eram judeus e que a Europa odiava os judeus porque eram judeus. Não é verdade”, disse o líder palestino. “Era por causa do papel social deles e não da religião.”
“Lutaram contra essas pessoas por causa de seu papel na sociedade, relacionado com usura, dinheiro e assim por diante.”
Pois é esse o líder supostamente moderado. Problema: não existe alternativa. Qual a probabilidade de que a liderança de Israel entregue uma futura autoridade sobre Gaza a alguém como Abbas, dando-lhe um cacife que não tem atualmente?
Lutar contra as probabilidades é praticamente a definição, hoje, do emprego de Antony Blinken, que está perdendo a aparência juvenil conservada até recentemente (inclusive tocando guitarra, com três músicas no Spotify), ficando com os cabelos brancos e acumulando incontáveis milhas nas viagens constantes entre capitais árabes e Israel, procurando um complexo equilíbrio entre o apoio inquebrantável ao Estado judeu e as tentativas de estabelecimento de “pausas humanitárias”.
De perfil baixíssimo durante a invasão da Ucrânia, causa que apoia com entusiasmo (seu filhinho foi fantasiado de Volodymyr Zelensky na festa de Halloween da Casa Branca), agora Blinken obrigatoriamente aparece mais, protagonizando a clássica “shuttle diplomacy”, a diplomacia do bate e volta. Chegou a ouvir de Mahmoud Abbas: “De novo aqui? Deveria arrumar um lugar para morar”.
“Estou pensando nisso”, respondeu Blinken, num raro momento de distensão no paredão de reclamações que ouve o tempo todo.
Além da necessidade humanitária de algum tipo de arranjo para proteger a população civil, existe também um imperativo político. Quanto mais sofrem os habitantes de Gaza, por causa do conflito iniciado pelo Hamas, mais instável fica a situação de aliados importantes dos Estados Unidos, como o Egito e a Jordânia.
De todos os interlocutores entre os quais Blinken se divide no momento, provavelmente o osso mais duro de roer seja o próprio Netanyahu. Depois do que aconteceu em 7 de outubro, nem o primeiro-ministro nem outros líderes israelenses vão ceder quanto ao propósito declarado de eliminar a capacidade militar e administrativa do Hamas.
O direito legítimo à defesa nacional se choca com a proteção à população desarmada de Gaza? O tempo todo. O critério de proporcionalidade entre objetivos militares específicos e o dano colateral, o eufemismo para vítimas civis, pode ser discutido? De novo, o tempo todo.
Guerra é um inferno. O Hamas procurou-a deliberadamente e Israel jamais poderia dar uma resposta menos do que arrasadora. Blinken descreveu uma das cenas monstruosas ocorridas durante o ataque do Hamas em seu depoimento para o Senado.
“Um menino e uma menina, de 6 e 8 anos, e seus pais estavam à mesa do café da manhã. O olho do pai foi arrancado na frente dos filhos. O seio da mãe foi decepado; o pé da menina, amputado, e os dedos do menino, cortados, antes que todos fossem mortos.”
“Daí os carrascos sentaram-se e comeram. É com isso que essa sociedade está lidando.”
Nem todo o poder da superpotência americana conseguiu até hoje o objetivo de sucessivos governos, de dois Estados convivendo lado a lado com concessões mútuas. Seria Blinken, o apagado burocrata dos escalões intermediários, habilitado ao cargo de secretário de Estado pela relação de confiança estabelecida quando assessorou o então vice-presidente Joe Biden, o autor de um milagre que escapou a Bill Clinton, Barack Obama e outras feras?
Realisticamente, isso parece impossível.
Alguns analistas estão vendo, ao contrário, uma crescente dicotomia entre Estados Unidos e Israel.
“Israel vê o Hamas como uma ameaça existencial e a sua erradicação como um objetivo crucial”, escreveu o Wall Street Journal. Já o governo Biden está tentando “manter seus aliados unidos contra Irã, Rússia e China. Os dois países querem evitar uma guerra regional, mas Israel se dispõe a correr mais riscos”.
Imaginem a ironia suprema que seria se Blinken não apenas não conseguir os pequenos passos que tenta no momento, mas terminar azedando uma relação já bem delicada com Israel.
Se não fosse difícil, não precisariam de diplomatas, brincam profissionais do ramo para valorizar seu papel. No momento, para Antony Blinken, difícil seria até um alívio.