Existe uma guerra “perfeita”, em que dois inimigos se confrontem puramente no campo de batalha, com forças e armamentos equivalentes, como numa disputa esportiva? Existe guerra em que não sejam cometidos abusos e mesmo crimes contra a população civil?
Estas são questões que afloram constantemente e as respostas são complexas, ainda mais depois que o Tribunal Penal Internacional emitiu ordem de prisão contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o homem que ele demitiu como ministro da Defesa, Yoav Gallant.
Em primeiro lugar, a honestidade intelectual e moral exige uma resposta contundente à questão fulcral: tem Israel o direito de guerrear, como um Estado moderno e bem equipado, uma organização armada com menos poderio bélico, mas com a disposição de matar crianças diante de seus pais, como aconteceu no 7 de outubro do ano passado? E que promete fazer de tudo para repetir as atrocidades?
A resposta tem que ser sim, pois em caso contrário implicaria no desejo de que o Estado judeu simplesmente aceitasse os esforços em favor de sua erradicação, inúmeras vezes proclamado por Hamas, Hezbollah, Irã e, lamentavelmente, mesmo por simpatizantes da causa antissionista, na maioria de esquerda (hoje é a direita quem se solidariza com Israel, inclusive a que vem com o rótulo de extrema, tal como refletido no convite que Viktor Orbán fez a Netanyahu para visitar a Hungria).
Mas a maioria das pessoas de bom senso percebe que existe uma diferença entre os danos causados por atos bélicos perniciosos à população civil, mas que não a tinham como alvo específico, e aqueles que procuram intencionalmente lhe fazer mal.
“MODERNO CASO DREYFUS”
É disso que Netanyahu e Galante são acusados pelo Tribunal Penal Internacional, uma entidade que trata de crimes de guerra cometidos por indivíduos (os atribuídos a estados são da competência do Tribunal Internacional de Justiça; para complicar, ambos têm sede em Haia).
Foram os dois israelenses os responsáveis máximos por provocar intencionalmente a fome de civis em Gaza, negar-lhes suprimentos básicos para sua sobrevivência, persegui-los, matá-los intencionalmente e “outros atos desumanos”? E como Israel poderia exercer o direito universal à autodefesa sem que nenhum desses danos tivesse sido infligido, ao guerrear com uma entidade que criou uma rede de túneis de onde desfecha ataques, muitas vezes sob a superfície de escolas, hospitais e mesquitas?
Netanyahu comparou a acusação, sem precedentes por ser contra representantes de um Estado democrático, “a um moderno caso Dreyfus”, uma referência ao clássico do antissemitismo, o julgamento por traição à pátria feita contra o oficial francês – e judeu – Alfred Dreyfus, acusado de vender segredos militares à Alemanha.
A exaltação de ânimos era grande porque a Alemanha havia anexado a sempre disputada Alsácia, o pano de fundo era nada menos do que o destino político da França no agitado final do século XIX e Émile Zola entrou na história com o inesquecível Eu Acuso, denunciando acusações fraudulentas e uma verdadeira conspiração do Exército para incriminar Dreyfus. O manifesto citava nominalmente vários generais.
FALSA EQUIVALÊNCIA MORAL
A sensação em Israel de que, mais do que má vontade ou antipatia política, existe um antissemitismo inerente a atos como a acusação do Tribunal Penal Internacional refletiu-se nas reações internas.
Num país em que ninguém concorda com nada e que metade das forças políticas tenta derrubar – democraticamente – a outra metade, foram praticamente unânimes as condenações ao enquadramento, em princípio, puramente simbólico: Israel não faz parte do TPI e os acusados só seriam levados a julgamento em Haia se um exército inimigo tomasse o país e os capturasse. Ou se viajassem a países que aderiram ao tratado que criou o tribunal, obrigados pelo compromisso assumido a cumprir o mandado de prisão.
Em princípio, Netanyahu e Gallant só ficam livres para ir aos Estados Unidos, um dos não signatários (Rússia, China, Índia, Egito e Arábia Saudita são outros).
Diplomaticamente, é péssimo para Israel. Em termos de imagem, a equiparação cínica entre Israel e Hamas – com o pedido de prisão de três líderes terroristas que já foram mortos – incrementa a ideia de que existe uma falsa equivalência moral entre as partes.
TORPEZA MORAL
É possível que o tribunal internacional tenha tido razão ao emitir um mandado contra Vladimir Putin, pelo crime específico de sequestro de crianças ucranianas levadas para a Rússia, e esteja errado ao agir contra os líderes israelenses? Sem dúvida nenhuma. Israel está se defendendo de uma entidade que prega a sua erradicação e não invadindo um país vizinho para anexá-lo, como fez Putin.
Pode ter cometido abusos?
Não há registros de guerras em que isso não tenha acontecido. Numa única noite no bombardeio de Tóquio, de 9 para 10 de março de 1945, cerca de 100 mil pessoas morreram queimadas por bombas incendiárias. Um mês antes, em Dresden, haviam morrido 25 mil. Japão e Alemanha teriam sido vencidos pelos aliados de qualquer maneira? É possível que sim, mas a guerra tem uma lógica própria e infernal – por isso, tudo deve ser feito para evitá-la.
É terrível que haja tantas vítimas inocentes em Gaza – e, na compunção que estas mortes provocam, não se pode perder de vista que o Hamas esperava exatamente isso depois de chacinar israelenses até em seus berços infantis. Não é uma guerra de vingança ou, pior ainda, genocídio, acusações que a torpeza moral e a deturpação política tornaram comuns entre os simpatizantes do terrorismo. Mas é uma guerra – ou seja, um inferno
O próximo governo Trump deve sancionar o tribunal internacional, tendo agora maioria no Senado e na Câmara para agir mais livremente. O senador republicano Lindsey Graham disse que qualquer aliado, seja Grã-Bretanha, França, Canadá, que “tente ajudar o TPI será sancionado”.
Como? “Sua economia será esmagada”.
FORÇAS MALIGNAS
O equilíbrio de forças vai mudar com o novo governo americano e o TPI talvez tenha se antecipado a isso com os mandados contra Netanyahu e Gallant. Aliás, muito elogiados pelo Hamas e seus simpatizantes.
Encerramos com três fatos de diferentes pontos do mundo para retratar as forças malignas que o ódio aos judeus está desencadeando. Em Montreal, no civilizadíssimo Canadá, estudantes com keffieh na cabeça fizeram a saudação nazista durante um protesto. Na igualmente civilizada Holanda, grupos de jovens geralmente de origem marroquina paravam pessoas nas ruas exigindo seus passaportes para ver se eram judias. E em Abu Dhabi, o rabino da minúscula comunidade ultraortodoxa Zvi Kogan foi sequestrado e assassinado, aparentemente por agentes a serviço do Irã.
Netanyahu e outros líderes israelenses exageram quando atribuem o processo do TPI ao antissemitismo? Claro que, como judeus, tendem a ver os ataques como produto do milenar preconceito – mas as piores suspeitas estão sendo diariamente confirmadas. As acusações de antissemitismo não conferem imunidade a Israel no campo de batalha, mas não podem ser ignoradas: são um perigo para todo mundo, não apenas os judeus.
Uma boa notícia parece prestes a ser anunciada: um cessar-fogo no Líbano. Iria um criminoso de guerra, como o TPI acusa Netanyahu de ser, aceitar esse tipo de suspensão de hostilidades, iniciada pelo Hezbollah pelo único motivo de ser “solidário” com o Hamas?