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Por Vilma Gryzinski
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Dúvidas e riscos: como definir alguém como Kamala Harris?

Idealmente, seria melhor nem precisar qualificar a vice-presidente eleita; mas o mundo atual ainda exige isso - e as complicações se acumulam

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 23 nov 2020, 17h47 - Publicado em 18 nov 2020, 08h13

Tratar as pessoas como elas querem ser tratadas é uma das regras básicas do convívio civilizado.

E tratá-las de forma ultrapassada ou diferente do desejável pode ter efeitos explosivos.

Problema: as regras mudam e variam de acordo com os tempos e os países onde o assunto é relevante.

O caso mais flagrante é o das formas completamente diferentes que as palavras “preto” e “negro” adquiriram no Brasil e nos Estados Unidos, ambos portadores das marcas pesadas da escravidão.

No Brasil, “preto” caminhou para se tornar indesejável ou inaceitável e “negro” passou a ocupar o seu lugar.

O contrário aconteceu nos Estados Unidos, onde “black” tornou-se a designação dominante, intercambiável com afro-americano. 

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“Nigger”, corruptela de “negro” (pronunciado “nigro”), transformou-se em ofensa gravíssima – exceto, claro, quando dita dentro do próprio grupo que define ou definia no passado.

Em inglês, não existe o uso na norma culta para adjetivar elogiosamente “cabelos negros” (como as asas da graúna) ou nossos tantos “rios negros”, entre outros acidentes geográficos.

O uso da palavra nas línguas latinas deu até origem a um movimento africano de valorização das origens e da cultura do continente, o Negritude. Um de seus expoentes foi Léopold Senghor, poeta e presidente vitalício do Senegal, ex-colônia francesa.

No Brasil, virou o grupo de pagode de músicas deliciosas. (Mas talvez a própria palavra “pagode”, caso de pejorativo que virou aclamativo, possa estar com os dias contados).

Um exemplo recente da volatilidade das palavras que abarcam designações raciais aconteceu com Greg Clarke, um cartola veterano que se viu obrigado a renunciar ao comando da Football Association da Inglaterra – a mãe de todas as federações de futebol – depois de empregar a palavra “coloured”, o equivalente a “de cor”.

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“Coloured” é muito associado à África do Sul, indicando pessoas racialmente misturadas – e só o apartheid, o regime de discriminação oficial, para codificar isso como categoria.

A expressão “de cor”, originalmente respeitosa ou receosa, no Brasil também se tornou obsoleta, embora ainda apareça na linguagem de pessoas mais velhas.

Clarke alegou que trabalhou muito tempo nos Estados Unidos, onde a palavra era aceitável. Não é verdade e não funcionou.

Mas existe uma expressão quase idêntica usada pelos americanos, “people of colour”, ou pessoa de cor, para designar praticamente todo mundo que não é branco ou negro.

A expressão até virou acrônimo, POC, e está na moda politicamente correta. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez, descendente de porto-riquenhos, já se descreveu assim. 

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No Brasil, claro, ela seria branca, outra designação que varia conforme o país e também é “socialmente construída” – aliás, como tudo o que é humano.

Até aqui ainda estamos na parte relativamente fácil. Mas como descrever uma pessoa como Kamala Harris, eleita vice-presidente na chapa de Joe Biden?

O mais próximo do certo seria multirracial: Kamala é um cadinho de raças. Por parte de pai, o economista jamaicano Donald Harris, ela se parece com muitos brasileiros, com negros e brancos na árvore genealógica.

Dizer que a mãe era indiana não resolve o problema da outra parte, uma vez que existem centenas de etnias na Índia. A pesquisadora biomédica Shyamala Gopalan é de origem tamil, uma dessas etnias, concentrada majoritariamente no estado de Chenai.

Ela também era da casta dos brâmanes, a mais alta do complicadíssimo sistema indiano que sobrevive a todas as tentativas de eliminação.

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Por causa do tom mais escuro de pele, os tamis de castas inferiores são discriminados em outras regiões da Índia. A preferência por peles mais claras é predominante em muitos países asiáticos e precede a era colonial.

Para uso eleitoral, a indo-afro-americana Kamala, ex-promotora e procuradora-geral da Califórnia, definiu-se como negra. E foi, com justiça, celebrada como tal.

Criada pela mãe ouvindo “você é indiana e você é negra”, ela não viveu a sensação de estranhamento descrita melancolicamente por Barack Obama (pai do Quênia, mãe americana branca, infância na Indonésia e adolescência no Havaí) em seu novo livro:

“Eu era de todos os lugares e de nenhum lugar, uma combinação de peças mal encaixadas, como um ornitorrinco ou um animal imaginário, confinado a um habitat frágil”.

A dança das palavras obedece as convenções sociais, intrinsecamente mutantes.

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O saudável desejo de não causar ofensa pode entrar por territórios absurdos. Locutores esportivos ingleses foram aconselhados a não elogiar a habilidade física de jogadores de futebol negros para não parecer que os enquadram num estereótipo.

Como qualificar a formidável fisicalidade de um Cristiano Ronaldo (branco em Portugal e no Brasil, POC nos Estados Unidos e BAME na Inglaterra)?

Bem, começa por não chamá-lo de BAME. O acrônimo, em inglês, para negros, asiáticos e outras minorias étnicas, criado justamente para parecer neutro, já está sendo considerado discriminatório.

Como todos nós já fomos ou viremos a ser multirraciais, o mundo estará um pouco menos complicado quando um Cristiano Ronaldo ou uma Kamala Harris sejam vistos, sem necessidade de enquadramento por cor de pele ou origem, como indivíduos de altíssima performance. 

E, para os menos privilegiados, quase insuportavelmente bem-sucedidos.

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