Daniel Ortega poderia ter aprendido com os escoteiros uns bons truques de sobrevivência na selva para a época em que foi guerrilheiro. Mas seu apreço pela instituição acabou: a associação dos escoteiros da Nicarágua foi fechada, juntamente com meia dúzia de ONGs que ainda sobreviviam.
A lista de perseguidos pelo grotesco regime que ele e a mulher, Rosario Murillo, impuseram ao país é um retrato da insanidade. O ex-guerrilheiro já expulsou freiras, fechou a Cruz Vermelha e exilou todos os principais candidatos que poderiam disputar a presidência com ele. Prendeu padres, encarcerou um bispo e simplesmente tomou a Universidade Centro-americana, a maior instituição católica de ensino do país, acusada de ser um “centro de terrorismo”.
Também proibiu procissões e, agora, na quaresma, a Via Crucis fora dos limites das igrejas. Os evangélicos não estão muito melhor: foram 256 instituições fechadas desde 2018. Até a bandeira nacional não pode ser empunhada nas ruas, por ter virado um símbolo de oposição. Por causa de uma foto empunhando a bandeira, durante os protestos de 2018, a Miss Universo, coroada em novembro passado, virou inimiga do regime.
Sheynnis Palacios, tão linda que parece ter sido desenhada numa laboratório de beleza, proporcionou a compatriotas nicaraguenses alguns momentos de alívio e festa quando foi eleita em El Salvador, mas logo virou anátema.
O fechamento da associação dos escoteiros, sob pretextos inventados, como de hábito, de “não promover a transparência em seu uso de verbas”, chama atenção pelo absurdo, mas é uma coisa “normal” na Nicarágua de Ortega: mais de 3,5 mil ONGs e outras instituições civis e religiosas, como clubes Rotary, já foram fechadas no país.
A perseguição à Igreja Católica atingiu o ápice quando o bispo Rolando Álvarez e mais quinze padres foram expulsos, em janeiro. Álvarez tinha sido condenado a 26 anos de prisão e havia recusado entrar no avião enviado pelos Estados Unidos para tirar do país líderes oposicionistas presos. Acabou cedendo, numa negociação feita com o Vaticano.
CAUDILHOS ENLOUQUECIDOS
Na Nicarágua acontece um fenômeno oposto ao de países latino-americanos em que padres e bispos se identificam com a esquerda. Mas até um dos maiores nomes da Teologia da Libertação, o padre Ernesto Cardenal, um sandinista convicto que fez parte do primeiro governo depois da derrubada da ditadura somozista, se revoltou, antes de morrer, com os abusos e o personalismo do casal Ortega-Murillo.
Ficaram distantes no passado os tempos em que os jovens e inspiradores líderes sandinistas, derradeiros representantes de uma época em que a revolução cubana ainda parecia um modelo a ser copiado, conseguiram derrubar a ditadura fundada por Anastasio Somoza.
Os resquícios de idealismo esquerdista foram substituídos por um regime que parece saído de algum dos grandes romances latino-americanos sobre caudilhos enlouquecidos pelo poder. Rosario, que é vice-presidente e cultiva uma imagem ligada a práticas esotéricas, fala constantemente em amor no programa diário de televisão. Proclama-se uma verdadeira cristã, ao contrário dos “servidores de Satanás” e “falsos representantes de Deus”.
“É falso que exista perseguição religiosa”, disse recentemente. “Se prendem um padre, algum motivo há”.
O casal presidencial está sempre alerta para qualquer resquício de organização social fora de seu controle. Nem os escoteiros escapam.