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Concerto na Síria: Bach para os mortos, dúvidas para os vivos

Putin faz brilhante - e bela - jogada de propaganda com apresentação de orquestra russa nas ruínas de Palmira

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 5 dez 2016, 11h21 - Publicado em 8 Maio 2016, 12h27
Bálsamo no deserto: Gergiev conduz a orquestra e a manobra de Putin

Bálsamo no deserto: Gergiev conduz a orquestra e a manobra de Putin

Um cenário ancestral, a divina música de Bach conduzida por um dos maiores maestros do mundo, erguendo-se como um bálsamo em direção à memória dos mártires sacrificados pelo mais hediondo grupo terrorista em atividade. O que poderia ser mais belo do que o concerto-surpresa da orquestra do Teatro Mariinsky no anfiteatro romano de Palmira, a cidade da Síria arrancada das garras do Estado Islâmico, que torturou o mundo com a lenta destruição das ruínas históricas e a execução coreografada de tantas vítimas?

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Como tudo o que envolve a guerra civil na Síria, o concerto regido por Valery Gergiev criou dúvidas morais e perguntas sobre alguns dos aspectos mais complexos enfrentados desde sempre pelos seres humanos. Para começar, de que lado ficar? Do menos ruim, representado pelo regime de Bashar Al Assad, responsável por atrocidades abomináveis?

Foi ele, afinal, quem reconquistou Palmira com orientação da Rússia, a qual planejou como brilhante golpe de propaganda a apresentação da conquista máxima da cultura humana, a música, e ainda por cima de Brahms e Prokofiev, em oposição às atrocidades de um grupo fundamentalista que pune com chibatadas ou coisa pior quem ouve qualquer coisa que não sejam cânticos religiosos.

Como aceitar que, em troca da salvação de Palmira, vejamos o telão com imagens de um Vladimir Putin em pose de pavão, abençoando a encenação? E qual o papel de um artista como Gergiev, defensor entusiástico do putinismo?

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Onde está a civilização e onde está a barbárie?

Não existem respostas fáceis, mesmo que essas perguntas tenham se repetido ao longo dos tempos. Algumas delas, bem recentemente, em termos históricos. Prokofiev, por exemplo, foi um dos dois grandes compositores da era soviética, juntamente com Shostakovich. Ambos geniais, ambos apologistas do stalinismo, ambos buscando brechas de luz aqui e ali – ou assim parecia aos que queriam amá-los, em oposição àqueles para os quais representariam as trevas da opressão para sempre.

O primeiro saiu e voltou, voluntariamente, à antiga União Soviética, curvando-se à estética obscurantista e às loas ao ditador. O segundo fez o mesmo, sem nunca ter saído. Caiu em desgraça política com sua obra de estreia na ópera, aos 26 anos, quando tinha cara e óculos de Harry Potter. Recuperou-se, viveu boa parte de sua vida em estado de terror, com a mala pronta, esperando a polícia chegar para levá-lo ao mesmo destino de praticamente todos ao seu redor, inclusive ou principalmente os mais ardorosos comunistas. Quando Shostakovich precisou de um fraque, o pavor em todas as esferas era tamanho que a questão foi levada até Stálin. Deu certo.

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Julian Barnes, autor de uma biografia recente de Shostakovich, O Ruído do Tempo, escreveu num artigo na semana passada sobre uma questão discutida por intelectuais ocidentais na época do totalitarismo: “Era preferível viver num estado repressivo, no qual a obra do artistas estava sujeita à vigilância oficial, mas representava uma lufada de ar fresco cheia de inspiração para os leitores, os ouvintes, os espectadores, no qual a verdade era tão importante quanto o pão e a arte tinha um valor real? Ou viver num país no qual o poder era indiferente a suas atividades, no qual todos (com certas exceções) podiam escrever, pintar, compor o que quisessem, mas com o corolário de que não significavam grande coisa para ninguém e quase todo mundo se recusava a se sentir ofendido por suas obras?”

Palmira tem várias camadas de civilizações antigas e algumas das ruínas foram explodidas pelo Estado Islâmico. As mais impressionantes, como sempre, são da era greco- romana. Mas a narrativa que passou para a história foi a de uma rebelião contra Roma, tendo à frente a viúva de um rei, Zenobia. Ela chegou a conquistar o Egito antes da vitoriosa, como sempre, reação romana. Redescoberta durante o romantismo, Zenobia virou quadros, contos e ópera, Aureliano em Palmira, de Rossini. É claro que o imperador romano disputa o coração de Zenobia – como existiria uma ópera sem o interesse romântico?

Via telão, o mundo assistiu Putin em Palmira, disputando corações na batalha ideológica contra o terrorismo islamista. Num toque extra, ele assistiu o solo de seu amigão Sergei Roldugin, que reúne as características unicamente russas de ser milionário, maestro, cellista e possivelmente laranja, como indicam os Papéis do Panamá. Laranja de Putin, claro.

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No filme O Concerto, uma deliciosa pequena obra franco-romena, um maestro aposentado do Bolshoi reúne músicos judeus e ciganos afastados da música na era Brejnev para fazer uma apresentação em Paris. Um oligarca cellista banca tudo, mas na hora da apresentação, é tirado de cena, comicamente, para não estragar tudo. Na vida real, muito mais complicada, Roldugin é um músico de primeira.

Só para lembrar: o Teatro Mariinsky era originalmente conhecido como o Bolshoi de São Petersburgo. Tinha a mesma designação – significando grande teatro – do Bolshoi de Moscou. Todos pertenciam ao czar. Algumas coisas não mudam na Rússia. Inclusive a capacidade de produzir beleza em meio à destruição.

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