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A patrulha chegou na cozinha: Jamie Oliver tem “assessores de ofensa”

Para não ser acusado de apropriação cultural - sem a qual não existiria nenhum prato no mundo - o chef inglês tem “equipe de especialistas”

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 26 jan 2022, 11h36 - Publicado em 26 jan 2022, 07h39

Yakisoba, macarrão à carbonara ou ceviche? É tudo complicado. Não de fazer, mas de ensinar receitas.

Esta é a conclusão a que chegou o chef inglês Jamie Oliver, que já vendeu quase 50 milhões de livros de receitas, embora os mais de vinte restaurantes que havia no país com sua assinatura tenham falido.

Celebrizado pelo jeito despachado  – alguns dizem que artificialmente turbinado – de fazer e popularizar uma infinidade de pratos em programas de televisão, Jamie, como é universalmente conhecido, disse numa entrevista à revista dominical do Times de Londres que tem “assessores de ofensa”.

O que fazem eles? Compras, preparativos, mis en place? Controle da enxurrada de palavrões que o chef profere? De jeito nenhum. A “equipe de especialistas em apropriação cultural” analisa suas receitas para ver se ele não está incorrendo no supremo crime de enriquecer suas produções com comidas estrangeiras da categoria complicada – ou seja, de minorias da população britânica.

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“A primeira reação é cair na defensiva e dizer: ‘Pelo amor de Deus’. Daí você pensa: ‘Bom, não quero ofender ninguém’”, disse ele sobre o processo que hoje é seguido, em escala muito maior,  por grandes empresas, em especial dos Estados Unidos e do Reino Unido, os focos onde o politicamente correto se origina e se irradia pelo mundo ocidental.

Jamie teve uma experiência infeliz em 2018, quando lançou uma versão instantânea para fazer “jerk rice”, um arroz cheio de temperos e pimentas variadas que é típico da Jamaica.

Foi acusado pela parlamentar Dawn Butler, filha de jamaicanos, da esquerda do Partido Trabalhista, de praticar a temida “apropriação cultural”. Ela disse que Jamie estava desvirtuando a mistura de temperos, originalmente usada para fazer uma marinada para frango ou carne.

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O problema está no advérbio “originalmente”. A receita jamaicana brotou espontaneamente do solo? Não usou especiarias que não existiam na África? E o “original” africano, trazido por escravos, não tem também um histórico de apropriações?

É  claro que se Jamie Oliver fizer uma moqueca ou um acarajé, muitos brasileiros vão reclamar que os pratos foram desvirtuados (embora uma simplificação do divino bolinho de massa de feijão pudesse ser uma benção para os que não nasceram ao pé de uma banca baiana).

“Sem apropriação cultural só existe estagnação”, disse o crítico de gastronomia Jonathan Meades no ano passado, quando a discussão reaflorou.

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Meades deu como exemplo um restaurante inglês que ofereça cassoulet. “Os guardiães da autenticidade não precisam se preocupar porque este restaurante estaria perseguindo o impossível”, comentou, alinhavando as possíveis origens do delicioso prato com feijão branco, linguiça e partes de carne de pato, porco ou até carneiro. A origem dele é dada como Toulouse, mas também pode ter vindo de Carcassone e até da pouco conhecida Auch.

Até Nigella Lawson, a deusa da cozinha, já enfrentou uma pancadaria danada desfechada por cozinheiros italianos por causa de sua receita de carbonara em que o creme fresco entra no lugar das gemas cruas.

Como são brancos e pertencentes ao mundo ocidental rico, os italianos reclamam e o carbonara vai mudando (entre eles próprios, não existe um consenso único sobre a receita). A coisa se complica quando a “apropriação” é de pratos típicos de países não-brancos.

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A sensibilidade exacerbada a qualquer coisa que soe como “apropriação” ou, pior ainda, racismo implícito, foi exemplificada por Priyamvada Gopal, indiana que é professora de estudos pós-coloniais em Cambridge. Ela acusou um historiador especialista em era medieval no Mediterrâneo, David Abulafia,de ter chamado um colega, David Olusoga, de “eloquente”.

Não seria um elogio, uma forma respeitosa e sem mácula de se referir a um intelectual? Claro que não, reclamou a professora. Chamar intelectuais “de cor” – Olusoga é filho de pai nigeriano – de eloquentes ou articulados é uma forma condescendente de dizer que até falam bem, mas “não têm substância”, segundo Gopal.

“Eu claramente vivo num círculo encantado, pois ninguém com quem falei desde que ela levantou suas objeções aceita que ‘eloquente’ tenha esse significado oculto”, escreveu no Spectator Abulafia, que é descendente de judeus sefarditas.

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“Eloquência é relacionada a persuasão. Péricles era eloquente. Churchill era eloquente. Martin Luther King era eloquente. A eloquência deles era efetiva. Por acaso, dois eram brancos, um era negro”, defendeu-se o professor emérito, usando argumentos que, se falados, seriam eloquentes – e inúteis, considerando-se que o interlocutor, ou interlocutora, não opera no campo da lógica, mas de princípios maximalistas que buscam ofensas raciais em tudo, seja num prato de arroz bem temperado ou num debate acadêmico.

Esforçar-se para não ofender ninguém – a ideia original do politicamente correto, antes que virasse um instrumento de poder, em especial no mundo acadêmico – é um comportamento moralmente saudável e elogiável. 

Às vezes pode criar dilemas, como o vivido atualmente em relação ao físico austríaco Erwin Schrödinger, cujo histórico de interesse por meninas adolescentes foi exposto pelo jornal Irish Times.

O Prêmio Nobel, que ficou conhecido popularmente por causa da experiência teórica chamada “o gato de Schrödinger – um gato que, dentro de uma caixa imaginária, podia estar simultaneamente vivo e morto por causa do caráter instável intrínseco do mundo quântico – “apaixonou-se” por meninas muito jovens. Uma delas, de 14 anos, de quem era professor de matemática, chegou a engravidar dele aos 17. Outra que entrou na lista de mulheres e meninas que ele deixou anotada em seus diários tinha 12 anos.

Alguns fatos já eram conhecidos, outros foram apontados pelo jornal da Irlanda, onde o gênio da física morou durante 17 anos. A sociedade pode ter se tornado mais sensível a anomalias assim. O nome de Schrödinger, que tinha cidadania irlandesa, foi tirado do salão de palestras de física do Trinity College, universidade de Dublin.

É um assunto bem mais sério do que a “apropriação” de receitas de cozinha e mostra como não existem respostas únicas para questões complexas.

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