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‘Pessoa não tinha imaginação’, diz biógrafo brasileiro

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Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 13 ago 2018, 22h45 - Publicado em 26 mar 2011, 09h38

Tem lançamento oficial na próxima terça-feira Fernando Pessoa: uma (Quase) Biografia (Record, 736 páginas, 79,90 reais), livro em que o advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti trata sem cerimônias de um clássico das letras portuguesas. Fernando Pessoa (1888-1935) é mostrado como um beberrão, um homossexual enrustido e, ainda, um escritor de rala criatividade. “Pessoa não tinha imaginação”, diz Cavalcanti, que descobriu 55 novos heterônimos do poeta – além dos 72 já catalogados pela especialista Teresa Rita Lopes – entre conhecidos seus e em jornais e textos escritos por ele, entre outras fontes. “Boa parte deles vêm de gente que existia mesmo, de admirações literárias ou lugares caros a Pessoa”, conta.

A tese de um Fernando Pessoa não muito criativo já nasce polêmica, em se considerando que é rotina na literatura escritores retrabalharem estímulos reais – observados ou vividos por eles – em suas obras. O próprio Cavalcanti parece ter consciência disso, pois prevê reações pouco amistosas. “Será normal que apareça algum Cristo”, afirma. Mas tem confiança no resultado do trabalho, que levou consumiu dez anos e contou com apoio de um historiador e um jornalista, em Portugal.

O primeiro poema que o advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti leu de Fernando Pessoa foi ‘Tabacaria’, em 1966

Durante os dez anos dedicados ao livro, o quarto de caráter biográfico sobre o poeta, o advogado reuniu documentos e peças do acervo de Fernando Pessoa, algumas cedidas por parentes – inclui-se aí uma sobrinha de Ofélia Queirós, a grande paixão do poeta. Da pesquisa, brotou, além das já citadas, a conclusão de que o escritor, apesar de afeito à bebida, não morreu de cirrose, como se pensava.

Às vésperas do lançamento nacional do livro, o (quase) biógrafo de Fernando Pessoa fala a VEJA.
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O senhor descobriu que Fernando Pessoa tinha um total de 127 heterônimos. Em que fontes o poeta se pautou para criar seus outros “eus”? De fato, até bem pouco, o número consensual de heterônimos era aquele dado por Teresa Rita Lopes: 72. No livro, mostro que o poeta usou, pela vida, 202 nomes, dos quais 127 seriam heterônimos, que agora são descritos com suas biografias possíveis. Apesar do número enorme de heterônimos, no final da vida, Pessoa decidiu abandonar todos para reunir o melhor do que escreveu num livro de 300, 400 páginas em seu próprio nome. Apenas lhe faltou tempo, para isso, pois logo lhe veio a “mater dolorosa da angústia dos oprimidos” (morte).

Como foram descobertos os novos heterônimos? O livro começou em um momento mágico, quando percebi que Pessoa não tinha imaginação. Diferentemente do que se pensa, ele preferia usar o que tinha à mão – sua vida, amigos, admirações literárias, mitologia. Fui descobrindo os heterônimos à medida que apareciam. E iam aparecendo por toda parte, em livros de sua biblioteca, nos pequenos jornais que escrevia, nos textos que analisei. Estavam ali, às ordens, esperando, até que alguma mão os resgatasse desse limbo. É como quem pela vida escreve um diário secreto, nem tão secreto assim, que, depois de ter a chave, tudo fica claro. Em Tabacaria, por exemplo, ele diz, “Se eu casasse com a filha da minha lavadeira, talvez fosse feliz”. Uma frase como essa bem poderia ser metáfora, claro. Mas, conhecendo seu estilo, já sabia que havia uma lavadeira, havia uma filha dessa lavadeira, e terá havido um romance entre eles. Quando fala em um Esteves conversando com o dono da Tabacaria, o “Esteves sem metafísica”, claro que havia mesmo um Esteves. Era um vizinho da família, que a pedido dela, por ironia, se dirigiu à Conservatória do Registro Civil para declarar o óbito do poeta.

Para entender melhor a questão: como se define um heterônimo? Em um primeiro momento, heterônimos são, ou deveriam ser, aqueles que escrevem com estilo autônomo em relação ao do autor real. Não só isso. E que escreveriam sobre temas específicos, diferentes dos usualmente tratados pelo autor. Aos poucos, entre especialistas de Pessoa, esse conceito foi se alargando, até chegar ao ponto atual, em que Pessoa escreve como se fosse outro. Claro que sem demonstrar, nem de longe, a autonomia que tinha aquela primeira classificação. Mantido o primeiro critério, bem visto, heterônimos seriam apenas três – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Se fôssemos estender um pouco mais, para considerar também aqueles que deixaram obra vasta, teríamos que incorporar mais cinco, a saber: Search, Mora, Baldaya, Teive e Bernardo Soares (admitindo que seja este o mesmo que Vicente Guedes, com o qual seriam então mais seis). No total, portanto, oito heterônimos (ou nove, como já visto). Mas a tese consensual é de que todos os nomes usados por Pessoa – para assinar traduções, prefácios, charadas, serviços diversos – constituem heterônimos. Inclusive o próprio Pessoa.

Então, os heterônimos não são todos poetas? A maioria dos heterônimos assina textos, mas para outros foi destinada alguma função específica: escrever livros que não de poesia, entre eles um de luta livre (que seria a capoeira de Angola), de sucesso em Bahia e arredores, traduzir obras de ocultismo, por exemplo, ou prefaciar obras – do próprio Pessoa e de terceiros. Alguns foram companheiros de viagem, que de certa maneira viveram com ele. Outros assinaram livros de sua estante. Ou fizeram charadas em jornais. É claro que, no fundo, era sempre Pessoa escrevendo. Álvaro de Campos, por exemplo, só escreveu poemas homossexuais até fins de 1919, quando Pessoa conheceu Ophelia Queiroz (que namorou o poeta em dois momentos). E, no fim da vida, vemos Campos casado, ao lado de uma esposa.

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Que espaço é dedicado à sexualidade do poeta? No livro, o tema ocupa um capítulo inteiro. Em resumo, Pessoa tinha uma natureza homossexual, mas nunca foi além disso (nunca concretizou sua opção). Não há um depoimento de amigo, um texto, uma foto em posição suspeita.

Pessoa bebia bastante. Com que evidência o senhor diz que ele não morreu de cirrose? Sim, ele bebia muito, muito além do que era razoável. A arte de beber, que no livro ganha todo um capítulo, lhe foi ensinada pelo tio Henrique Rosa. Quanto à morte, convidei um grupo grande de professores doutores para discutir as causas de sua morte. E restou consensual não ter sido por cirrose. Apesar de Pessoa ter bebido sempre além da conta, não foi cirrose, com certeza. Ele não apresentou nenhum dos sintomas clássicos das fases finais da doença – icterícia, ascite, distúrbios neuropsíquicos, hemorragia digestiva alta, coma –, sem contar que cirrose não dá a dor abdominal aguda que ele teve, às vésperas da morte. A causa mortis provável terá sido pancreatite. O livro dedica um capítulo aos estudos que levam a essa conclusão.

Que outras revelações o livro traz, e de que modo essas descobertas mudam a visão que se tem de Pessoa? No livro, busco saber quem é o homem por trás da obra. Sua obra já está bem estudada, faltava saber como era ele. E, pouco a pouco, das sombras, emerge um homem vaidoso e discreto. O livro fala de seus hábitos – suas rotinas e manias, como o sentar sempre sobre as mãos, a cabeça levemente pendida para a esquerda, o falar baixo – e também de um livro de poesias que escreveu e vendeu a um russo, que o publicou. Fala também do último encontro de Ophelia Queiroz, implausível amor, com seu corpo, no Hospital São Luís dos Franceses. Um estudo mais amplo sobre sua sexualidade, suas angústias, a arte de beber.

Suas páginas já irritaram alguém? Ainda não. Mas penso que será normal que apareça mesmo algum Cristo. Mas eu contratei um historiador e um jornalista, em Portugal, para revisar cada página. A geografia de Lisboa, a história de Portugal, nomes, tudo foi conferido. Há dois tipos de pessoas, os felizes e os desesperados. Os felizes, homens sensatos que são, marcam data para acabar e acabam suas tarefas. E seus livros. Os desesperados, enquanto sentem que pode ficar melhor, não terminam nunca. Infelizmente, para mim, pertenço a este segundo grupo. Há suor e sangue, no livro, que escrevi em pelo menos quatro horas por dia, durante quase oito anos, indo em média quatro vezes por ano a Lisboa, conversando com todo mundo, inclusive anônimos que o conheceram. Escrevi um livro que ainda não existia, mas que eu queria ler. Sem nenhuma ideia de que seja aquele que os outros quererão mesmo ler. Espero que sim. Ardentemente.

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