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O analista de Borges

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Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 jun 2024, 13h37 - Publicado em 1 Maio 2011, 09h56
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    borges-uma-vida-capa“Senti (os contos) profundamente. Tão profundamente que os contei, digamos, usando símbolos estranhos, de maneira que as pessoas possam não perceber que eles eram todos mais ou menos autobiográficos. Os contos eram sobre mim mesmo, minhas experiências.” A declaração, dada em 1967 pelo argentino Jorge Luis Borges a um jornalista da Paris Review, parece ter se fixado na mente do professor de espanhol de Oxford Edwin Williamson (na foto abaixo à direita). Durante os nove anos em que realizou entrevistas e pesquisas para compor Borges: uma Vida (Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia Soares, 672 páginas, 68 reais), que chega às livrarias brasileiras nesta segunda-feira, Williamson buscou incansavelmente vínculos entre as experiências de vida do escritor e seus textos.

    O livro, lançado nos Estados Unidos e na Europa em 2004, faz uma completa investigação da vida de Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor argentino que, embora nunca agraciado com um Nobel – o que o discípulo Ricardo Piglia atribui ao fato de não ser romancista –, foi reconhecido ainda vivo como um dos maiores do século XX. Completa, sim. Mas também repleta de interpretações do autor, Williamson. Num gesto que a princípio se pode dizer corajoso, mas em seguida se mostra um tanto infeliz, o professor de Oxford abriu mão da psicanálise para entender Borges à sua maneira. Foi assim que, mesmo ao narrar as relações do escritor com a vanguarda europeia e uma efervescente cena literária em Buenos Aires, sua oposição a Perón e seu apoio à ditadura militar, que depois recriminaria pelos desaparecidos políticos, deu ênfase maior a teorias criadas de próprio punho para provar como vida e obra se concatenam nas poesias e contos do mestre portenho.

    Num trecho em que relaciona as aventuras e desventuras amorosas de Borges à sua paixão por Dante, que tinha por musa Beatriz, e pelo símbolo do infinito, o aleph, visto pelo biógrafo como a cura buscada por um homem de personalidade cindida, Williamson procura explicar, como se fosse preciso, a escolha do título do livro de contos O Aleph – aquele que Paulo Coelho tomou emprestado, para horror dos leitores de Borges. “Decidiu chamar o novo livro de O Aleph, nome do conto que escrevera depois de se apaixonar por Estela Canto. Por que escolheu esse título? Creio que foi porque, por volta da época em que O Aleph veio à luz, em 26 de junho de 1949, Estela Canto entrara em sua vida de novo e Borges estava novamente tentado a vê-la como a ‘nova Beatriz’ cujo amor o libertaria de seus infortúnios.”

    Todas as escolhas de Borges, para Williamson, dizem respeito à difícil conciliação de seu caráter, cartesianamente dividido por pares de opostos. Ou por um par central do qual derivam os outros. Da oposição entre a mãe aristocrática, mas dominadora, e o pai passivo, mas liberal, surgem os confrontos entre tradição e revolução, força e fragilidade, passado e presente, pampa e cidade e, principalmente, entre a obediência a um comportamento rígido, significativamente “de família”, e sua vontade de namorar mulheres de condição econômica inferior ou de espírito libertário, que alimentariam a sua escrita.

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    Vale dizer já aqui que a teoria do autor tem falhas. O pai de Borges, embora submisso, era adúltero com a tolerância da mulher e chegou, num momento de cegueira avançada – o mal do escritor era hereditário –, a paquerar a própria esposa, pensando ser outra pessoa.

    Leia a entrevista concedida por Borges às páginas amarelas de VEJA, em 1980

    Clique aqui para ver a entrevista em vídeo com Alberto Manguel, os ‘olhos’ de Borges

    Simbologia borgiana – Os primeiros capítulos do livro são fundamentais para a compreensão da teoria de Williamson. Nas primeiras páginas, ele faz um impressionante painel da história da Argentina do final da colonização aos primeiros anos de República, situando ali os antepassados de Borges – criollos, seus dois avôs, Isidoro Acevedo Laprida e Francisco Borges Lafinur, morreram lutando por causas políticas. E em seguida se dedica a mostrar como crescer entre uma mãe dominadora, que o oprimia com a nostalgia da grandeza da família, e um pai passivo, cheio de ideias revolucionárias mas subordinado à mulher, fez de Georgie, apelido do pequeno Borges de avós paternos ingleses, uma criatura em constante crise existencial.

    Surge aqui a explicação para cinco símbolos presentes na obra e na vida do escritor: a biblioteca, o punhal, a espada, o tigre e o espelho. A primeira biblioteca que Georgie conheceu foi a do pai, de cerca de 1.000 livros, que lhe serviu de playground. Apesar de não ter os mesmos recursos que possuíra no início da independência argentina, a família vivia com conforto em uma casa no bairro de Palermo, reduto de imigrantes calabreses e sicilianos de situação inferior, no início do século XX. A mãe não o deixava ir para a rua se misturar à ralé e quase toda a sua educação, mesmo a formal, foi feita em casa. O pouco tempo que Borges passou na escola da região foi traumático: visto como riquinho pelos colegas, o menino, que era míope e gago, foi vítima de bullying.

    O tigre, que marcaria o escritor desde a infância, era seu animal preferido no zoológico de Palermo, na frente do qual se demorava tanto que uma vez chegou a enfrentar a mãe para não ter de voltar para casa. Ao que tudo indica, uma das únicas ou a única vez em que Borges enfrentou Leonor Acevedo. Williamson se apropria da paixão do garoto pelo tigre, que estampa alguns de seus desenhos, para daí criar a tese de que o animal representaria a força e a coragem que ele gostaria de ter diante da mãe, para fazer valer seus desejos e não se submeter à rigidez do lar e da herança familiar, representada pelas duas espadas de seus avôs que pendiam pesadamente como peças decorativas da casa.

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    Contra a opressora espada da família, Georgie teria como arma o punhal, desde que ouvira o pai falar do tigreiro, homem que mata tigres com uma punhalada na barriga. Se o punhal é capaz de matar um tigre, seu poder é incomensurável, pensa Williamson. A teoria do professor de Oxford apresenta aqui outra fragilidade: é difícil entender por que o pequeno Borges iria querer matar o tigre, elemento de força que poderia ajudá-lo a enfrentar os mandos e desmandos maternos. O biógrafo sustenta que o tigreiro teria um poderio rival ao dos ancestrais do escritor – e, por tabela, da mãe, que os representa. Isso se entende. Complicado é enxergar o papel ambíguo do tigre, admirado mas morto pelo punhal, nessa história.

    O conceito do espelho, embora carente de originalidade, é mais palpável. Segundo o biógrafo, Borges sofreu desde cedo de um sentimento de inadequação, fruto do cenário em que cresceu. A cobrança de corresponder à imagem de seus antepassados, dos quais se sentia muito distante – dor semelhante à que seu pai sentiu em relação ao próprio pai, que não chegou a conhecer e cuja enorme sombra sempre o anulou –, fez com que o garoto não se sentisse digno das atenções que recebia. “Seus aniversários o enchiam de vergonha, porque todos lhe davam presentes, quando ele pensava que não fizera nada para merecê-los; aquilo o fazia sentir ‘que era uma espécie de impostor’”, escreve Williamson.

    Daí resultou, segundo o autor, a duplicidade, o espelhamento. “Imaginava que podia ver o rosto de outra pessoa olhando fixo para ele e odiava ter de se olhar no espelho, como se seu reflexo ameaçasse roubá-lo do sentimento de quem era de fato.”

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    Encontros e desencontros – Williamson buscou incansavelmente relacionar a obra de Borges a passagens da sua vida. Tão incansavelmente que chega a cansar o leitor. Com base na sua teoria, todo caso amoroso é entendido tanto como desafio às decisões que o escritor não tomava sobre a própria vida – vale lembrar que viveu com a mãe até os 76 anos, o que conta a favor e contra o biógrafo, já que pode denotar uma relação edipiana que ele evitou abordar – quanto como combustível, quando em boa fase, ou prejuízo, quando rompido, à sua literatura.

    Em certo momento, ao falar da poetisa Norah Lange, paixão descoberta por ele, Williamson escreve: “Esse sentimento de comunhão no amor exerceria uma influência poderosa nas ideias literárias de Borges”. Aqui, o professor de Oxford analisa poemas de Borges e de Norah que denotariam uma “intimidade sem precedentes” entre eles – embora em nenhum ponto fique claro se o caso superou a barreira do platonismo.

    É perceptível o esforço do biógrafo para dar humanidade a um homem conhecido por ser cerebral, criptográfico e aristocrático. Williamson procura tornar a vida de Borges palatável a um público amplo, mas a riqueza do seu trabalho está naquilo que foge a essa proposta. Está em oferecer o mais vasto conhecimento factual sobre a vida do escritor já reunido e em mostrar como Borges, apesar de quase sempre infeliz no amor, teve sorte, enquanto escritor, na vida.

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    Menino criado à maneira aristocrática, sem trabalhar por muitos anos e podendo entregar-se à leitura em tempo integral, ele viveu, graças a mudanças da família, períodos na Europa e acompanhou o desenvolvimento de vanguardas que abraçou e depois rejeitou para achar a própria voz, numa evolução intelectual notável. E pôde, de volta à Argentina, fomentar um debate artístico, criando revistas literárias e situando-se sempre no centro da discussão.

    Não bastasse, o submisso Borges foi bem sucedido em ser uma versão melhorada de seu pai, um passivo escritor fracassado que, perto de morrer, pediu ao filho destacado nas letras para reescrever o romance de que mais se orgulhava, El Caudillo. Borges, aqui, superou ao pai e a si mesmo: transformou o pedido paterno no conto Pierre Menard, Autor do Quixote, em que uma espécie de Paul Valéry repentinamente transformado em Kafka  se dedica à tarefa de reescrever Cervantes. Não copiando, mas repetindo o original, com o objetivo de fazer coincidir palavra por palavra e linha por linha. Sim, a literatura de Borges pode ser autobiográfica. Mas não ao pé da letra nem forçando conexões simplistas com a realidade. Ou não seria Borges.

     

    Leia a entrevista concedida por Borges às páginas amarelas de VEJA, em 1980

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