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Desilusão política e amorosa marca livro da chilena Diamela Eltit

Em ‘Jamais o Fogo Nunca’, autora chilena convidada da Flip expõe as mazelas de casal militante após ditadura

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 18h13 - Publicado em 28 jul 2017, 17h39

Capa do livro 'Jamais o Fogo Nunca' de Diamela Eltit

Um casal de ex-militantes vive clandestino e confinado em um pequeno quarto. A sensação de claustrofobia é constante, mas compensada pela força da narrativa de Diamela Eltit. A autora chilena de 67 anos estreia no Brasil com o livro Jamais o Fogo Nunca (Relicário). Sua obra, extensa e inédita no país, se caracteriza por histórias em que a psique dos personagens, suas reflexões, visão de mundo e ideologia são mais fortes do que as suas ações. Não seria diferente no romance que marca a visita da autora à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

O livro emana sensações, cheiros e iluminações, como se fossem palpáveis. A trama se passa na mente da figura feminina do casal, que tem a vida pautada pela repressão da ditadura militar dos anos 1970. O ambiente de opressão transforma o amor e os pensamentos políticos da dupla. Sem identidades, nem direito de ir e vir, os personagens são torturados pela memória, pelo convívio forçado e pela ausência de perspectiva de um futuro diferente.

Na Flip, Diamela participa, na sexta-feira, da mesa “A Contrapelo”, ao lado do documentarista Carlos Nader, em que falam sobre resistência artística.

Confira abaixo entrevista da autora a VEJA:

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Como concebeu a história de Jamais o Fogo Nunca? O eixo que me mobilizou foi a militância como símbolo de pertencimento. Me impressionava e ainda me impressiona ver como os militantes dos anos 1970 continuam relembrando, sempre que possível, o tempo que viveram. Me senti comovida ao perceber que é naquele período que está a essência de suas vidas. Este foi meu primeiro impulso. Depois, claro, a ficção. Parte dessa militância se formou ao redor de discussões baseada em conceitos objetivos e até científicos. Quis revelar estas ideias. Além de dar a palavra à mulher militante, que ficou fora do protagonismo durante esses anos. 

Os personagens do romance estão livres, mas vivem como reféns ou mortos em uma espécie de purgatório. Como foi o processo de criação destas pessoas e suas mentes? Minha intenção (para além do resultado em si) foi mostrar, no espaço da multiplicidade, sujeitos cativos. Suas mentes estão envolvidas e presas a um tempo específico, como foi o tempo da militância. Mas, por outro lado, poderiam estar mortos. Como “células mortas” pela violência política, ou continuam vivos e descontinuados, em um período de tempo que não conseguem habitar.

A estrutura de seus livros é descontínua, com narradores bem distintos de uma obra pra outra. Quão difícil é compor uma trama com o tempo sem começo, meio e fim? E como escolhe o melhor narrador? Acredito que os narradores é que tomam para si os romances, pois cada livro precisa de um narrador ideal para se encarregar de contar a história. Não tenho problema com a parte da estrutura descontínua, já que a escrita é uma zona de risco. Adentrar uma estrutura literária implica em mergulhar e se arriscar.

A protagonista do livro critica o marido por suas opiniões políticas imutáveis. A senhora é alguém que mudou muito de valores e ideias ao longo da vida? Acredito que é necessário ser flexível para entender os tempos, suas técnicas e tecnologias. Ao mesmo tempo, também acho importante conservar pensamentos sólidos e de direitos e opções que devem ser protegidos. 

“Penso no feminismo em termos de igualdade, conservando as diferenças”

Diamela Eltit
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Em uma interessante cena do livro, a protagonista deseja um vestido de uma vitrine. Ela pondera sobre o assunto como se fosse um grande pecado. Atualmente, com as redes sociais, o feminismo ganhou novas dimensões e ramificações. Com grupos que sugerem padrões de comportamento e ideais. Qual sua opinião sobre o assunto? A vitrine do vestido é um momento de paradoxo para a personagem, que sai de sua função social e se percebe fora de sua história de luta. Eu vejo o movimento feminista com muitas vertentes, formas e horizontes. Mas não acredito em parâmetros rígidos — contanto que os direitos sociais das mulheres sejam a base. Em meu caso, penso no feminismo em termos de igualdade, conservando as diferenças. Tenho refletido especialmente sobre a temática salarial, como uma metáfora em que a mulher recebe menos porque, historicamente, “vale” menos. Para mim, esse é um ponto de luta necessário para qualquer tipo de feminista.

No romance, termos políticos são constantemente explicados. Como quando o casal discute sobre a diferença entre um nazista e um fascista. É comum vermos hoje nas redes sociais brigas ideológicas causadas justamente por falta de conhecimento em relação aos conceitos. Hoje temos outro momento tecnológico, diferentemente do que acontecia nos anos 1970. As redes sociais vão desde o narcisismo até discussões políticas, como também oferecem informações valiosas. Contudo, vejo as redes como um marco do efêmero. De falas e discussões, muitas vezes, impulsivas. Não questiono a importância das redes, mas acredito que o que é produzido ali segue as formas de produção da sociedade do espetáculo.

Assim como a protagonista, a senhora também é casada com um político (Jorge Arrate, ex-ministro de três presidentes chilenos e candidato à presidência do Chile em 2009). Misturar amor com ideologia funciona? Tenho essa ideia de que o amor é acompanhado por elementos ideológicos. Mas também não acho que o matrimônio seja uma condição necessária. No meu caso, considero fundamental que, em um relacionamento, cada um tenha sua identidade própria e que busque suas ambições. Uma relação sólida acontece quando o casal passa junto pela vida, conservando sua própria identidade. Pelo menos, até hoje (nunca se sabe) isso tem funcionado para minha relação.

As ditaduras do Brasil e do Chile foram dolorosas. Contudo, ainda existem grupos que militam pelo retorno do regime militar. Como vê essa questão? Os grupos que pedem pela volta de um regime militar são desmemoriados. Também ocorre que é dura a memória deste período. O pós-ditadura foi muito difícil, pois o regime deixou arestas muito complexas, que evidenciaram a parceria entre as forças militares e os poderes econômicos internacionais. No caso chileno, tivemos a intervenção da CIA. Ainda encaramos a desumana categoria de presos desaparecidos. São pessoas que, até hoje, não sabemos se estão vivas ou mortas. Foi um tempo marcado por infrações e falta de garantias jurídicas. É um tempo difícil de lembrar.

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