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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog
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Sem bem comum não há projeto de Brasil

Ensaísta Davi Lago lembra que nenhuma nação prospera com bases sociais tão divididas.

Por Davi Lago
Atualizado em 26 jul 2021, 07h52 - Publicado em 26 jul 2021, 07h51

Às vésperas do bicentenário da Independência, as lideranças políticas brasileiras não conseguem articular uma noção mínima de bem comum. Basta ler os programas de governo propostos nas eleições de 2018, de 2020 e acompanhar o noticiário presente.

De fato, o conceito de bem comum desempenha um papel proeminente na história do pensamento político ocidental. Suas origens são traçadas desde a filosofia grega clássica. Embora outros filósofos tenham mobilizado o conceito, Aristóteles foi o primeiro a fazer do bem comum um aspecto central na teoria política, destacando-o como o objetivo principal da atividade cívica e como o critério para avaliação de um governo. Na Política, Aristóteles afirma que um regime político é corrupto quando quem exerce o poder o faz em função de si mesmo e não do “bem comum”. Do mesmo modo, a ênfase de outros pensadores antigos foi associar a ideia de bem comum aos propósitos da vida virtuosa, que só poderiam ser alcançados plenamente em uma comunidade política.

Em contraste, a ênfase dos pensadores modernos foi refletir sobre as condições políticas capazes de proporcionar aos indivíduos a construção de seus próprios projetos de vida. As visões coletivistas da sociedade, que também se desenvolveram na era moderna, demandaram sacrifícios dos indivíduos em nome do “bem comum”, gerando um embate com as visões liberais. Assim, diferentes pensadores modernos conceberam o bem comum em termos de justiça, bem-estar material, ou maximização utilitária. Na teoria política contemporânea, a reflexão sobre o bem comum inicia com o chamado debate liberal-comunitarista dos anos 1980. Uma súmula dos filósofos fundamentais que embasam a discussão corrente inclui o liberal John Rawls, os comunitaristas Charles Taylor e Michael Walzer, o democrata-deliberativo John Cohen, o republicano Philip Pettit, o eticista da virtude Alasdair MacIntyre, o jusnaturalista católico John Finnis, e o jesuíta David Hollenbach.

Especialmente nas últimas décadas discute-se sobre uma “crise do bem comum”. Afinal, a incivilidade na arena pública esteve presente em grande parte das democracias ocidentais no início do século XXI. Fatores como antipolítica, partidos políticos enfraquecidos, popularidade de mentiras, desinformação e fake news, agressividade verbal, digital e física, manifestações de rua, vandalismo, rejeição aos governantes tradicionais, caracterizaram o espírito desta época. O período foi marcado por múltiplos movimentos de contestação e recrudescimento do fanatismo político. Paul Collier relaciona esta crise de incivilidade com o afastamento pelos grupos políticos emergentes do ethos fundado na reciprocidade prática que marcou as comunidades no pós-Segunda Guerra. Em O futuro do capitalismo, Collier afirma que os discursos de insatisfação social que irromperam com a recessão econômica e o aumento da desigualdade encontraram um terreno ético já desagregado: “a inquietação, a raiva e o desespero destroçaram as lealdades políticas das pessoas, a confiança que tinham no governo e até mesmo a confiança entre elas”.

De todo modo, verifica-se entre os anos 2000-2020 uma multiplicidade de contestações políticas e um vácuo de discursos políticos de índole comunitária e democrática capazes de mobilizar grandes contingentes eleitorais. O enfraquecimento das grandes ideologias políticas na virada do último século foi substituído em grande escala por discursos políticos de índole identitária ou facciosa. Assim, o paradigma do Estado Democrático de Direito teve sua legitimidade social obliterada. Abriu-se espaço, entre outras coisas, para a presença cada vez maior do radicalismo político na arena pública. Obviamente, a saída para estes desafios é intrincada. Mas um passo básico é o fortalecimento de discursos que reafirmem alguma noção de bem comum e a premissa da fraternidade que fundamenta o regime democrático. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica publicado em 2004 oferece um postulado urgente para nosso tempo: o bem comum não consiste na simples soma dos bens particulares de cada sujeito do corpo social. Sendo de todos e de cada um, é e permanece comum, porque indivisível e porque somente juntos é possível alcançá-lo, aumentá-lo e conservá-lo, também em vista do futuro.

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Compromisso com o Brasil exige compromisso com a fraternidade social. Sem a articulação de um discurso político decente, que parta de uma noção clara de bem comum, os supostos “projetos de nação” papagueados por pré-candidatos à presidência não passam de bravatas para agradar grupelhos partidários ensimesmados. Nenhuma nação prospera com bases sociais tão divididas. A lição é básica: são os elementos comuns que fundam as possibilidades da convivência e do desenvolvimento.

* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo

 

 

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