Roleta-russa: guerra na Ucrânia e o desarranjo internacional
O ensaísta Davi Lago mostra como o confronto sacudiu, em dias, a dimensão militar e o arranjo de governança que rege as nações
Em dez dias a guerra na Ucrânia sacudiu a dimensão militar do arranjo de governança político-jurídico-econômica que rege as nações. A ordem internacional estabelecida entre 1944-1948 pelos vencedores da Segunda Guerra incluiu a manutenção do equilíbrio militar entre Estados Unidos e a então União Soviética, o tratado de Bretton Woods, a criação do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, a formação da OTAN, da ONU e seu Conselho de Segurança, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Evidente que esta moldura sofreu inúmeras alterações no curso das décadas, especialmente após o fim da União Soviética. Nos últimos anos, por exemplo, a OTAN expandiu seu alcance, o sistema econômico quase colapsou na crise financeira de 2008, EUA e China iniciaram uma guerra comercial, a pandemia da Covid-19 levou ao fechamento de fronteiras não visto desde a década de 1940, a indústria 4.0 acelerou as transformações tecnológicas e os bancos centrais proeminentes iniciaram o desenvolvimento de suas próprias moedas digitais.
A despeito de todas estas mudanças políticas e econômicas, desde o fim da Guerra Fria as tensões militares entre EUA e Rússia, as maiores potências bélicas do planeta, não estiveram no centro dos debates públicos. Todos os conflitos armados do período ocorreram em esferas localizadas e sempre supervisionados por russos e estadunidenses. A peculiaridade desta situação foi tão grande que surgiu uma dificuldade entre os acadêmicos em conceituar as guerras no início do século 21. A professora Mary Kaldor, autora da obra-referência As novas guerras: violência organizada na era global, afirma que denominações como “guerra irregular”, “conflito pós-moderno”, “guerra informal ou privatizada”, “conflitos de baixa intensidade”, “guerra interna”, “guerra degenerada”, foram empregados na tentativa de descrever eventos como o combate ao narcotráfico e ao terrorismo, e as intervenções estadunidenses e russas no Oriente Médio. Este período, contudo, terminou com a invasão russa sobre a Ucrânia.
O avanço do exército sob comando de Vladmir Putin acionou reações em todos os níveis da governança mundial e reacendeu de uma só vez as discussões sobre uma Terceira Guerra Mundial e o holocausto nuclear. De fato, a comunidade internacional testemunhou o exercício militar russo com mísseis transatlânticos capazes de transportar ogivas nucleares e o comando de Putin para que o arsenal atômico russo esteja à postos. As reuniões “extraordinárias de emergência” no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU dão o tom do momento. Agora, os analistas de geopolítica voltam-se da literatura sobre guerrilhas e redes terroristas para os teóricos da guerra moderna como Carl von Clausewitz.
Aliás, compreender as perspectivas sobre a guerra e a convivialidade possível entre Estados é tarefa crucial para se entender quais são os horizontes inaugurados pela guerra na Ucrânia. Por exemplo, filósofos como Kant e Fichte alimentaram a esperança da paz perpétua, um mundo sem guerras que seria estabelecido com a destruição do Antigo Regime feudal e absolutista. Por outro lado, autores como Hamilton e Tocqueville afirmaram que as guerras entre Estados continuariam não apenas por causa dos recorrentes conflitos de interesses, mas também pelo conflito de paixões entre as pessoas – já que os seres humanos não deixaram o “desejo de aquisições injustas”, “os impulsos de raiva, ressentimento, ciúme” e “o espírito de conquista e rapina”. A despeito das óbvias diferenças de perspectiva, há um ponto em comum nas reflexões ocidentais mais influentes sobre a manutenção da paz: o autoritarismo facilita guerras e gera sociedades politicamente atrasadas.