Não vivemos no mundo que desejamos, mas no mundo que existe. Regularmente somos afrontados e as coisas não saem como havíamos planejado. Volta e meia não temos certeza de que caminho seguir e sentimos certo cansaço diante dos desafios. Viver, de certo modo, é enfrentar problemas. Conforme o poeta Paulo Leminski, os problemas têm família grande e aos domingos saem para passear: “o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas”. Há milênios o livro de Jó sintetizou muito bem essa condição humana: “Acaso a vida na terra não é uma luta?” (Jó 7.1). Deste modo, a questão que muitas pessoas enfrentam é: como não enlouquecer diante de tantos problemas? Como podemos enfrentar os múltiplos desafios que a vida impõe? Por onde começar?
Um aprendizado que podemos extrair da Natividade de Jesus é cultivar a virtude da humildade. Afinal, “o orgulho leva à desgraça, mas com a humildade vem a sabedoria” (Pv 11.2). Esta máxima apresenta duas atitudes internas (orgulho ou humildade) que podem levar à diferentes resultados externos (desgraça ou sabedoria). A noção de “orgulho” neste texto vem de uma palavra que sugere ferver a água até que ela suba e derrame do recipiente e se aplica à arrogância daqueles que exigem ter tudo conforme seus caprichos. Decerto, pessoas orgulhosas não pedem licença, atropelam; não pedem perdão quando estão erradas, justificam-se; não dão explicações quando convém, mas ameaçam; nunca agradecem, mas sempre cobram; não elogiam quem merece, mas reclamam de tudo e todos; não bendizem, mas amaldiçoam; não perdoam, mas procuram vingança. Normalmente, pessoas orgulhosas demonstram arrogância a partir de suas próprias inseguranças psicológicas. Diversas pesquisas empíricas de psicologia social identificam que indivíduos que demonstram egoísmo e narcisismo apresentam níveis mais elevados de agressividade ao ouvirem insultos que ameaçam seus egos. No dia a dia, o arrogante só se preocupa com outras pessoas na medida em que servem à sua própria exaltação. Assim, o orgulho impede o acesso à sabedoria levando a pessoa a prejudicar a si própria (Pv 8.36) e criar conflitos desnecessários com o próximo (Pv 13.10).
O Natal, por outro lado, coloca a humildade no centro da vida moral de uma forma dramática e sem precedentes. Como Santo Agostinho percebeu, o Natal inverteu a lógica do orgulho. Confrontando seu contexto cultural imediato, que entendia a humildade como um obstáculo ao florescimento humano, a narrativa do Natal afirmou o exato contrário: a humildade é o caminho para o genuíno florescimento. Agostinho afirmou que essa perspectiva da humildade “não se encontra em livro nenhum dos epicureus, dos estoicos, dos maniqueus, dos platônicos. Em todos eles se encontram ótimos preceitos sobre costumes e disciplina; contudo lá não se acha esta humildade. A corrente desta humildade vem de outra fonte: vem de Cristo”.
Em uma sociedade onde o sucesso é definido em termos de produtividade e autossuficiência, a humildade é erroneamente associada à passividade e baixo autoestima. No período moderno, filósofos como David Hume e Friedrich Nietzsche, por exemplo, esbravejaram contra a ênfase cristã na humildade. Contudo, apesar de seus detratores, a noção cristã da humildade atravessou os séculos. Até mesmo o cínico escritor La Rochefoucauld reconheceu que a humildade é “a prova das virtudes cristãs: sem ela mantemos todos os nossos defeitos, e eles só ficam ocultos pelo orgulho que os esconde dos outros e muitas vezes de nós mesmos”.
Indubitavelmente, a ênfase natalina na humildade, alterou completamente a compreensão do que é uma vida humana bem-sucedida. Feliz natal!
* Davi Lago é coordenador de pesquisa no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (PUC/SP) e doutorando em filosofia e teoria do direito pela Universidade de São Paulo