Juiz descobre associação ‘de fachada’ que queria faturar com trabalhadores
Com enredo rocambolesco, magistrado aponta que advogado e procuradora do Trabalho podem ter criado entidade para ganhar honorários em causas milionárias
Um advogado e uma procuradora do Trabalho são suspeitos de criar uma associação de fachada, que supostamente representaria os interesses de trabalhadores de diversos setores, com o objetivo de ajuizar ou entrar como parte em ações na Justiça do Trabalho e, assim, faturar com os honorários de sucumbência – que são pagos ao advogado que ganha a causa. Seria apenas mais uma história de possível fraude, que ainda está em apuração, não fosse o enredo rocambolesco que levou à descoberta do caso. A “investigação” não partiu da polícia, como de costume, mas de um juiz trabalhista, que recebeu no mês passado uma ação ajuizada pela Associação Primeiro de Maio e desconfiou da representatividade da entidade.
A associação pedia 200 mil reais a título de danos morais coletivos para os trabalhadores de uma empresa (Eaton), mas acabou chamando a atenção porque havia sido criada apenas seis meses antes, em Campinas (SP), e só tinha três membros: o presidente, o advogado Raphael Miziara, que é professor de direito, autor de livros e colunista de sites jurídicos, a vice-presidente, Carolina Hirata, que se declarava “servidora pública”, e o secretário-geral, Fábio Zanão. Além disso, o estatuto da associação tinha regras incomuns, como mandato de oito anos para seus membros. A desconfiança do juiz responsável por analisar a ação trabalhista, Bruno da Costa Rodrigues, da 5ª Vara do Trabalho de São José dos Campos (SP), aumentou depois que se descobriu, em consultas públicas pela internet, que Carolina Hirata é procuradora do Trabalho, o que poderia gerar conflitos de interesse – informação depois confirmada oficialmente pelo próprio Ministério Público do Trabalho.
No início de maio, o magistrado decidiu pedir explicações. Num primeiro momento, a associação negou haver irregularidades. Depois, informou que Carolina tinha renunciado ao cargo de vice-presidente em novembro passado, mas não tinha registrado a renúncia em cartório. A tentativa de registro retroativo só foi feita neste mês, logo após os questionamentos do juiz, mas o cartório não aceitou por causa da incompatibilidade das datas. Além disso, de novembro para cá, Carolina continuou assinando documentos da associação como vice-presidente – o que levou o juiz a desconfiar que estavam tentando enganá-lo.
“A situação se complica ainda mais”, escreveu o magistrado nesta quarta-feira, 25, na decisão que revela o suposto esquema, “pelo fato da Excelentíssima Procuradora do Trabalho Carolina Marzola Hirata manter união estável com o Presidente da associação e advogado Dr. Raphael Miziara, sendo o único advogado que patrocina todas as ações da entidade”.
O magistrado continua: “A situação passa a ser inconcebível” quando se descobre que, com seis meses de existência, a Associação Primeiro de Maio já atua em cerca de quarenta processos trabalhistas em todo o país, pedindo “valores vultosos (alguns milionários)”, quando é autora da ação, ou “aditamentos para majoração do valor de indenizações”, quando entra como parte em ações de autoria do Ministério Público do Trabalho. “A atuação coletiva da Associação resume-se à postulação de condenações indenizatórias ou de aplicação de multas por obrigações que apresentam o potencial de gerar honorários sucumbenciais consideráveis”, observa o juiz.
Mas a situação fica mesmo “estarrecedora”, nas palavras do magistrado, quando se descobre que a Associação Primeiro de Maio “teve acesso e utilizou em ações próprias documentos de investigações colhidos pelo próprio Ministério Público do Trabalho em fase final de investigação, além de ter interferido e prejudicado investigações em andamento”. A suspeita, portanto, é que Carolina usava informações que obtinha como procuradora do Trabalho para mover as ações por meio da associação – o que foi relatado por colegas da carreira dela, que, quando iam iniciar os processos em nome dos trabalhadores de determinadas empresas (geralmente de grande porte), ficavam sabendo que a entidade havia chegado na frente, utilizando documentos que tinham sido produzidos pelo próprio Ministério Público do Trabalho.
Desde que o juiz levantou as suspeitas, a Associação Primeiro de Maio desistiu das ações que tinha na Justiça do Trabalho. Uma delas, por exemplo, contra uma empresa alimentícia de Campinas, envolvia a quantia de 1,97 milhão de reais.
Diante dos indícios de irregularidade, o juiz trabalhista de São José dos Campos, além de rejeitar a ação proposta pela Associação Primeiro de Maio (que pedia a indenização de 200 mil reais), ainda enviou ofício para o Ministério Público de São Paulo, para o Ministério Público Federal e para a OAB analisarem a atuação da entidade – o que pode render uma investigação criminal contra seus membros. O advogado Raphael Miziara afirmou, em nota, que “a decisão proferida está equivocada. Todos os esclarecimentos necessários serão prestados perante as instâncias competentes”.