A arte esquecida
É preciso resgatar e ensinar aos futuros médicos a prática de ouvir, entender e apoiar o doente. Isso é tão importante quanto ter sólida formação técnica
Quando nos formamos médicos, saímos da faculdade com a gana de ajudar e salvar o maior número possível de pessoas. Se há muito ainda a se aprender, a residência médica e a especialização preenchem várias lacunas de conhecimento. Seguido de alguns anos de prática clínica, nada mais é capaz de conter o desejo de salvar tudo e todos. Nada pode fazer frente à soma de conhecimento técnico, habilidades e força de vontade. Até nos depararmos com o inesperado. Não a surpresa de algo raro ou incorrigível. Mas a determinação da opinião pessoal.
Há alguns anos fui chamado para avaliar um paciente. A doença não era comum, com diagnóstico difícil feito por uma excelente colega. Mas a gravidade e o tratamento eram bem definidos: o risco de morte em curto prazo beirava os 95% e o tratamento era uma cirurgia cardíaca de grande porte e alto risco, com taxa de mortalidade beirando os 35%. Aparentemente, uma matemática simples. Explicados todos os prós e contras, era evidente que o paciente concordaria com o tratamento. Mas sua resposta foi um contundente não. Calcado na mais profunda certeza, seu não era intransponível. Não houve apelo estatístico, científico, religioso, filosófico ou pessoal que o convencesse do contrário. Chamei a equipe de cirurgia para convencê-lo, também sem sucesso. E, assim, o senhor foi do hospital para casa. Cerca de um ano depois, vi sua esposa andando sozinha em um supermercado. Presumi que de fato havia ocorrido a esperada fatalidade. Não tive coragem de a abordar. A confirmação do que imaginava seria também o atestado da minha incapacidade médica.
Após dois anos, a mesma colega me chamou ao hospital e disse: “nosso paciente voltou!” Quando entrei no quarto, lá estava ele, vivo, a despeito de qualquer porcentagem que teimasse em dizer que seria impossível. Manifestando muitos sintomas por causa da sua condição, explicou que, quando nos conhecemos, sua neta estava grávida. E queria muito conhecer sua bisneta. A menina nascera pouco depois e ele curtiu muito sua bisnetinha nos três anos que haviam se passado. Agora, ele achava que estava na hora de operar. Não era mais possível viver com a dor no peito e a falta de ar limitantes.
Todos de acordo, o paciente foi submetido à cirurgia, vindo a falecer cinco dias depois, ainda na UTI. Não houve revolta familiar, somente compreensão e entendimento. Aquele homem me ensinou muito mais do que muitos professores catedráticos. Sua lição não estava escrita em nenhum dos livros de vários volumes que tantas noites passei acordado lendo. Ouvir, acolher, entender, compartilhar e apoiar um doente é uma arte, esquecida em alguma carteira antiga de madeira que já nem se usa mais. Temos que a resgatar e transmiti-la aos nossos alunos, futuros médicos, tanto quanto um sólido conhecimento técnico. Ou até mais. Não são todos que terão a chance de encontrar um professor tão fantástico quanto o que tive a honra de conhecer. Sempre o agradecerei por isso.