Tragédia na Índia complica vacinação no Brasil
Secretários de saúde alertaram o Senado sobre "cenário difícil", com "escassez de vacinas", por causa da dependência brasileira dos insumos indianos
A tragédia de saúde pública na Índia vai ter consequências diretas no abastecimento de vacinas contra a Covid-19 no Brasil. É o que prevê o Conselho Nacional de Secretários de Saúde.
Dois meses atrás, em março, o governo indiano acreditava ter vencido a pandemia, porque registrava apenas 18 mil novos casos de Covid-19 por dia entre 1,3 bilhão de habitantes.
Nesta semana a Índia se tornou o primeiro país a registrar mais de 400 mil casos confirmados de infecção num único dia. Houve aumento de 2.122% em apenas oito semanas.
Na quinta-feira 4 de março, morreram 113 pessoas. Só ontem foram 3,7 mil, número considerado subestimado no registro oficial. A Índia passou o Brasil na quantidade de mortes diárias por pelo vírus.
Essa devastação terá reflexos no fluxo de exportações indianas de matéria-prima para vacinas contra a Covid-19, medicamentos e materiais médico-hospitalares.
Hoje, o Brasil é totalmente dependente dos suprimentos da Índia e da China, responsáveis por dois terços do abastecimento mundial.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde informou ao Senado que já considera a possibilidade de maior escassez de vacinas contra a Covid-19, porque a Índia é um dos principais fornecedores de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) para imunizantes.
Na semana passada, quando a mortalidade indiana estava em 2,2 mil pessoas por dia, o presidente do conselho, Carlos Eduardo de Oliveira Lula fez o alerta numa comissão de senadores: “Eu acho que a gente tem um cenário difícil, dificílimo, e, para os próximos 12 meses, a gente deve ter um cenário de escassez de vacinas – isso é preciso ser dito.”
Acrescentou: “A gente não sabe o que vai acontecer com a Índia, onde há um recrudescimento muito grande da doença e é o maior exportador de IFA. A gente não sabe o que pode acontecer. Eventualmente, podemos nem receber o IFA, que receberíamos. Portanto, teríamos dificuldades além do que já estava previsto para as nossas vacinas.”
Ontem, quando ultrapassou 408 mil mortos, o Brasil ainda não havia vacinado 16% da população com a primeira dose. Alguns estados (Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins) sequer chegaram a imunizar 12% dos habitantes.
Menos de 8% dos brasileiros tinham recebido a segunda dose. E em metade das capitais registrava-se falta de vacinas.
Hoje, no Senado, a CPI da Covid começa a analisar as causas da perda de controle da pandemia.
Nas tragédias do Brasil e da Índia percebem-se traços comuns de arrogância, negacionismo e inépcia. Jair Bolsonaro atravessou 2020, projetando a reeleição, subestimando a pandemia (“gripezinha”) e comprando cloroquina em vez de vacina.
Ano passado viajou a Nova Délhi para pedir ao primeiro-ministro indiano Narenda Modi que facilitasse a exportação de hidroxicloroquina ao Brasil. Conseguiu, voltou a Brasília e mandou-lhe uma carta de agradecimento recheada de referências a lendas religiosas.
Sob inspiração do então chanceler Ernesto Araújo, escreveu: “Assim como o Senhor Hanuman trouxe o remédio sagrado do Himalaia para salvar a vida do irmão do Senhor Rama, Laksmana (sic), e Jesus curou aqueles que estavam doentes e restaurou a visão de Bartimeu, Índia e Brasil irão superar esta crise global unindo forças e compartilhar bênçãos para o bem de todos os povos.”
O premiê indiano, em campanha permanente pela reeleição em 2024, passou a delirar na salvação do planeta. No último janeiro, depois de exportar 50 milhões de frascos de vacina contra a Covid-19, foi a uma reunião de empresários em Davos (Suíça) e anunciou: “A Índia salvou o mundo, e a Humanidade inteira, de uma grande tragédia ao controlar efetivamente o coronavírus.”
Agora, Bolsonaro e Modi ruminam os próprios desastres de governança na pandemia, enquanto assistem ao visível fortalecimento das oposições domésticas. Subestimaram o vírus, acabaram atropelados por ele.
São políticos beneficiários de um etapa de ascensão do radicalismo conservador no mapa-múndi, consolidada na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016. Esse ciclo, aparentemente, entrou em declínio nos EUA, na Índia e no Brasil.