Empresários gaúchos mostram como a intolerância contaminou a campanha
Grupo de empresários e parlamentares gaúchos alinhados a Jair Bolsonaro impede palestra do presidente do Supremo, tratado como adversário político
Um grupo de industriais, comerciantes e parlamentares gaúchos alinhados a Jair Bolsonaro demonstrou ontem como a intolerância contaminou o ambiente político.
Eles conseguiram impedir uma visita do presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, à cidade de Bento Gonçalves, conhecida pelas vinícolas, a duas horas de Porto Alegre.
Fux havia sido convidado pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves para um jantar na sexta-feira 3 junho no hotel SPA do Vinho, com ingressos vendidos a R$ 200.
O cardápio previa, antes da sobremesa, uma palestra sobre um tema decisivo no processo de decisão empresarial — o risco e a segurança jurídica no Brasil.
Na tarde de segunda-feira, o grupo começou a organizar, por redes sociais, um boicote do evento em protesto contra o Judiciário, o Supremo e, sobretudo, contra Fux, porta-voz institucional na crise fomentada por Bolsonaro nos últimos três anos.
Evoluiu nas 48 horas seguintes com adesões públicas de alguns dos patrocinadores de eventos da associação empresarial.
Um deles, Roni Kussler, anunciou publicamente o veto ao evento com o presidente do Supremo, com retirada do patrocínio à entidade. Depois, apagou a publicação em rede social.
Desde os anos 90, Kussler se destaca na comunidade empresarial da serra gaúcha pelo arrojo na construção de uma marca de produtos de limpeza (Saif) na indústria da qual é sócio, a Mackerduz. Conseguiu triplicar as vendas no eixo Rio Grande do Sul-Santa Catarina durante a pandemia e, agora, tenta disputar com as multinacionais do setor uma fatia do mercado paulista.
A financeira regional Sicredi Serrana também aderiu ao boicote. Numa carta à associação de empresários, divulgada pela colunista Rosane de Oliveira, da Zero Hora, esgrimiu com os “impactos na nossa marca” e ainda advertiu que estaria atenta a “movimentos similares no futuro”.
Sob pressão dos financiadores, a entidade de Bento Gonçalves resolveu retirar o convite. Alegou a impossibilidade de garantir a segurança de Fux na cidade — um disparate, porque, se necessário, todo chefe do Judiciário dispõe de serviço de segurança equivalente ao de presidente da República.
Diante do desastre político, a seção local da Ordem dos Advogados decidiu assumir o evento, custos incluídos. Rodrigo de Souza, presidente, escreveu uma nota pública: “A Democracia é feita pelo diálogo, a oportunidade de ouvir e ser ouvido, bem como de termos o representante máximo do Judiciário Nacional em Bento Gonçalves é um momento ímpar para nossa sociedade.”
“Independentemente de sentimentos e interesses políticos”- acrescentou. “Como já dizia Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.”
Não deu. Fux cancelou a visita e a palestra. Parlamentares gaúchos aliados de Bolsonaro festejaram “a vitória” em discursos gravados no plenário da Câmara. A máquina governamental se encarregou da repercussão, reforçando o anúncio da presença do candidato presidencial na cidade no próximo dia 9, para abertura de uma feira de vinho.
Em 2018, Bolsonaro venceu a eleição no Rio Grande do Sul com 63% dos votos. Chegou a 81,5% em Bento Gonçalves.
O recorde estadual foi de 92,9% numa cidade próxima, Nova Pádua, que já havia dado 88,1% dos votos ao mineiro Aécio Neves (PSDB) na disputa com a gaúcha Dilma Rousseff (PT), em 2014.
A região sempre foi antipetista. No entanto, ontem, Beto Gonçalves sinalizou uma mudança de tom na campanha eleitoral, para privilégio à intolerância. Como escreveu o colunista Gerson Lenhard, do portal local Leouve, “o episódio diz mais sobre a cidade e o país do que sobre o ministro”.