Em 1745, aos 16 anos, sem um tostão (sua família estava falida) e com a cabeça cheia de ideias, a princesa Sophie de Anhalt-Zerbst casou-se com o também alemão Karl Peter Ulrich, de 17 anos. Foi um desastre. Sophie, rebatizada Catarina, e Karl, então já conhecido como Pedro, não iam com a cara um do outro antes, e passaram a se detestar e desprezar-se depois. Catarina recebera uma educação primorosa e era uma entusiasta dos princípios iluministas da razão e do conhecimento. Pedro era uma negação em termos acadêmicos — ou em quaisquer termos. Tinha devaneios de glória militar e era frívolo, cruel, devasso e grosseiro. Sua tia Elizabeth, imperatriz-reinante da Rússia, apontou-o como sucessor porque Pedro era neto por parte de mãe do legendário czar Pedro, o Grande. O rapaz, porém, detestava tudo que se referisse à Rússia. Quando Elizabeth morreu, em 1762, e ele a sucedeu como Pedro III, durou apenas 186 dias no trono — durante os quais até fez coisas interessantes, como decretar liberdade de culto (a Igreja Ortodoxa ficou furiosa) e tornar ilegal o assassinato de servos, que formavam a massa da população e eram propriedade absoluta de seus senhores. Antes que Pedro pudesse livrar-se dela, Catarina organizou apoio entre a aristocracia e os militares e obrigou o marido a abdicar. Em oito dias ele estava morto, de causas muito mal explicadas. Inaugurou-se aí um reinado de 34 anos que passou à história como a “era de ouro” russa — embora tenha tido também um pronunciado lado de chumbo.
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É o caso de avisar que a atrevida, divertidíssima e excelente The Great (Inglaterra/Austrália, 2020), a série do Hulu que acaba de estrear no Starzplay, faz gato e sapato dessa história: a czarina Elizabeth (Belinda Bromilow) nunca herdou a coroa e é agora uma tia avoada que tenta treinar borboletas (mas corta a garganta de crianças quando necessário); Pedro (Nicholas Hoult) aqui virou filho de Pedro, o Grande, e manifesta na forma de esbórnia, birra e acessos de selvageria seus intensos sentimentos de inferioridade (tem, também, uma fixação pela mãe castradora, há muito morta mas bastante presente em sua vida, por assim dizer). Já é czar quando Catarina (Elle Fanning) se casa com ele, e desde o instante em que chega à corte ela não para de pensar em dar um golpe para, no comando, empurrar a Rússia à modernidade — apesar de contar apenas com o burocrata medroso Orlov (Sacha Dhawan), o general bêbado Velementov (Douglas Hodge), o amante sensível Leo (Sebastian De Souza) e a criada Marial (Phoebe Fox), uma ex-aristocrata ressentida. O palácio em São Petersburgo é um circo permanente de bebedeiras, comilanças, orgias e quebra-quebras; a maioria dos nobres é analfabeta e, quando alguém tem um pensamento, ele morre de solidão — mas não sem que sua morte seja celebrada com um Huzzah!, a interjeição preferida deste Pedro III.
Apesar de refazer a crônica conforme sua conveniência, o criador Tony McNamara acerta em cheio na essência. Da mesma forma que no seu roteiro premiado de A Favorita, McNamara consegue abordar simultaneamente, e com igual propriedade, o passado histórico e as circunstâncias atuais: trata de como era excepcional o exercício do poder por uma mulher (veja alguns exemplos nos quadros), e de como ainda nos dias de hoje é comum que a reprodução seja ao mesmo tempo exigida das mulheres e utilizada contra elas; vai fundo na opulência e nas bizarrices da corte russa e na maneira como ela esmagava as classes trabalhadoras (que, sob Catarina, a Grande, conheceriam doses inéditas de opressão) para comentar o abismo contemporâneo entre o 1% e os 99%; alfineta a deterioração cultural das ditas elites, e dá boas caneladas no clero retrógrado. Também como em A Favorita, convida o elenco, todo ele formidável, para a festa. E não deixa jamais de deleitar o espectador, ao mesmo tempo que o obriga a considerar seu papel nesse teatro do absurdo. A história, de fato, não foi bem assim — e, no entanto, é exatamente essa.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692
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