Uma ideia engenhosa: Christopher Plummer é um homem que já não se lembra de nada, mas tem a missão de corrigir um crime do passado
Garanto que você vai acompanhar este filme do diretor canadense Atom Egoyan do começo ao fim no maior suspense e sem fazer a menor ideia – mas nem uma ideiazinha sequer – da reviravolta que espera por você no desfecho. Começa assim: Christopher Plummer é Zev Guttman, um judeu que mora num residencial para idosos e acabou de perder a mulher – fato que ele não registra, por estar com mal de Alzheimer e já em franca perda da memória. Zev não é bem o candidato ideal para sair viajando pelos Estados Unidos, mas é isso que outro idoso, Max Rosenbaum (Martin Landau), quer que ele faça, agora que está viúvo. Zev e Max são os únicos que ainda poderiam reconhecer o criminoso nazista Otto Hamlisch, que matou as famílias de ambos no campo de extermínio de Auschwitz. Otto entrou nos Estados Unidos ao final da II Guerra Mundial, em 1945, com o nome de Rudy Kurlander – nome que ele roubou de uma de suas vítimas. O problema é que mais três outros alemães chamados Rudy Kurlander entraram no país na mesma época. Qual dos quatro é o carrasco? Essa é a primeira tarefa de Zev: viajar para quatro cidades e identificar Otto. E então, em seguida, matá-lo; Max argumenta que tanto eles quanto o nazista estão velhos demais para cumprir os prazos longos dos tribunais, e a justiça terá de sair de suas próprias mãos.
O que posso adiantar é que, sempre guiado por uma carta de Max com instruções detalhadas, Zev encontrará, sim, os quatro Rudy Kurlander ou os descendentes deles (e são apavorantes e desorientadoras as horas que ele passa na companhia de um sujeito interpretado por Dean Norris, o cunhado de Walter White em Breaking Bad). Dois dos Rudy são vividos por atores célebres por seus desempenhos em filmes de II Guerra: Jürgen Prochnow foi o heróico capitão de um submarino alemão em O Barco – Inferno no Mar (que está disponível no Netflix), e Bruno Ganz foi, claro, um Adolf Hitler sem rival em A Queda!. Não há dúvida que Atom Egoyan está brincando com as expectativas da plateia. Mas a brincadeira é particularmente intrigante no caso do seu protagonista: Christopher Plummer, de 86 anos, está esplêndido no papel de Zev; a maneira como ele a cada dia reconstrói sua memória e compreende desde o início a sua missão é um trabalho de ouriversaria. Plummer, porém, fez carreira interpretando tipos patrícios ou arianos, e homens de autoridade e de poder. Vê-lo à mercê do esquecimento é uma experiência desconcertante.
Não é sutil a ideia que o desmemoriado Zev representa, mas nem por isso ela é menos pertinente: setenta anos após o fim da II Guerra, a última geração de sobreviventes do Holocausto (e de criminosos de guerra nazistas) logo terá deixado de existir. Com ela, desaparecerão também as memórias diretas do genocídio, e é inevitável que, em algum momento, a aventura insana do III Reich de Hitler passe a uma dimensão distante e quase ficcional na imaginação coletiva. Ao mesmo tempo em que reafirma a necessidade urgente de tornar tão concreta quando possível essa memória e continuar unindo os fios dela que ainda permanecem soltos, Atom Egoyan explora a ideia de que qualquer memória pode ser reescrita, refeita, moldada e alterada em uma infinidade de narrativas diferentes, até o ponto em que o próprio dono das lembranças acredite na verdade de suas reinvenções. E quando isso acontece, pergunta Egoyan, quem é o homem – o que ele foi ou o que ele lembra ter sido?
Trailer
MEMÓRIAS SECRETAS
(Remember)
Canadá/Estados Unidos, 2015
Direção: Atom Egoyan
Com Christopher Plummer, Martin Landau, Bruno Ganz, Jürgen Prochnow, Henry Czerny, Dean Norris
Distribuição: Diamond