Jeff Daniels expõe lado decadente da América na série ‘American Rust’
A Pensilvânia exausta é a coadjuvante do ator, numa interpretação que articula a pressão das tragédias econômicas sobre os dramas pessoais

Entre as regiões americanas que apanharam feio da economia nas últimas décadas — a parte da Costa Leste que viu sua indústria pesqueira definhar, a hoje quebrada Detroit das montadoras de automóveis —, talvez nenhuma tenha sofrido um declínio tão drástico e inexorável quanto aquela parte da Pensilvânia e da Virgínia Ocidental que concentrava a siderurgia. Fustigada pela transferência maciça da produção para outros países, sem a visão e os recursos necessários para se modernizar e condenada ambientalmente pela sua dependência do carvão, essa parte do antigo “Cinturão da Manufatura” começou a virar “Cinturão da Ferrugem”, ou “Rust Belt”, nos anos 70 para os 80: uma paisagem de cidades semimortas e esvaziadas e de fundições em ruínas, cheirando a desalento, pobreza e desespero, onde o consumo de opioides e metanfetamina é epidêmico. Trata-se de muito mais que uma locação; é um lugar que já vem com a própria dramaturgia, um conceito que está no centro de American Rust (Estados Unidos, 2021), série que acaba de estrear no Paramount+ e ganha novos episódios semanais até 7 de novembro.
Igualmente no centro dela está um ator que é um mestre da austeridade, da secura e de um tipo essencialmente americano de estoicismo: Jeff Daniels, 66 anos de idade e quarenta de uma carreira muito frutífera que, na última década, desde sua colaboração com o criador e roteirista Aaron Sorkin em The Newsroom, afinal adquiriu a grandeza devida. Na série de 2012 ou em A Lula e a Baleia, Steve Jobs, Perdido em Marte, The Looming Tower e Godless, entre tantos outros trabalhos, o ator que a certa altura foi famoso por Débi & Lóide sempre se distinguiu pela inteligência analítica e algo implacável com que constrói seus personagens. Del Harris, o chefe de polícia da fictícia Buell, Pensilvânia, é um exemplo consumado dessa arte. Daniels não é só o protagonista de American Rust; desde que leu o romance homônimo de 2009 de Philipp Meyer, colocou-se como deflagrador do projeto, seu maior defensor e, em certo sentido, seu principal realizador.
Filho de um ex-prefeito de uma cidade pequena do Michigan — outro estado sacudido pelo declínio —, Daniels diz ter reconhecido, no livro, o ambiente do qual veio. “Conheço essas pessoas. Sei como elas falam, como elas pensam, como elas andam”, disse o ator ao The New York Times. Veterano da primeira Guerra do Golfo e da força de Pittsburgh, Del Harris tem muito em comum com os cidadãos de Buell, e por isso os compreende tão bem: sua carreira é um fim de linha, sua vida pessoal fica entre o não existente e o desastroso e ele briga com sua dependência de medicamentos. Quando um ex-policial demitido por má conduta aparece assassinado, Harris se divide entre cumprir o dever e proteger o provável autor do crime — porque ele é um rapaz triste e sofrido (Alex Neustaedter está excelente no papel), que já se meteu com a lei em uma situação que não provocou, e porque ele é filho de Grace (Maura Tierney), a costureira por quem Del é apaixonado, mas que ainda vive sob cerco do marido inútil e mulherengo.
Como em outros filmes e séries que têm essa Pensilvânia exausta como cenário — O Franco-Atirador (do qual American Rust “rouba” a célebre sequência de uma festa de casamento), Tudo por Justiça e a recente Mare of Easttown —, as circunstâncias sociais e econômicas se fundem de modo indivisível nos dramas pessoais. Mas é sobretudo na atuação quase impassível mas repleta de nuances de Daniels que a tragédia se articula.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756
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