Concordo, Bergman é “difícil”. Mas vale tanto a pena…
Uma das duas obras-primas feitas pelo sueco Ingmar Bergman em 1957 (a outra é O Sétimo Selo), está sendo relançado hoje em várias cidades do país, em cópia restaurada, Morangos Silvestres, a história de um velho professor que revê sua vida ao sentir que o fim dela está próximo.
Bergman, que morreu em 2007, é em igual medida reverenciado e tido como um cineasta difícil ou inacessível. Não há dúvida de que fácil ele não é mesmo. Mas quem se dispuser a desbravar sua obra extensa vai ser recompensado com experiências que nenhum outro diretor – nenhum – seria capaz de proporcionar. Um homem de franqueza brutal, Bergman mergulhou em profundezas da natureza humana nas quais poucas pessoas têm coragem de se aventurar. As paisagens psicológicas que ele compôs frequentemente são devastadoras, e talvez por isso muitos espectadores sintam que assistir a seus filmes é árduo. Aos iniciantes, recomendo uma tática simples: começar lá pelo começo, nos filmes dos inícios 50 (ele mesmo não apreciava muito os que fizera ainda na década de 40), como Juventude, Noites de Circo e Sorrisos de uma Noite de Verão, prosseguir com esse duplo salto mortal de 1957 e então ir caminhando pouco a pouco pela filmografia dele em ordem cronológica, com tempo para deixar cada filme “assentar” antes de ver o próximo. Faz sentido porque a obra dele realmente tem uma progressão, e muitos temas são revisitados e eventualmente “amarrados” de trabalho em trabalho.
Para quem quer saber um pouquinho mais sobre Bergman, aí vai o texto que fiz na semana da morte dele:
O poeta da dúvida.
Ingmar Bergman, o diretor que fez o cinema se impor como uma forma de pensamento e de poesia.
Ingmar Bergman já tinha uma dúzia de filmes lançados na Suécia quando, em 1957, se projetou de forma meteórica no panorama mundial. Nesse único ano, ele fez duas obras-primas do cinema. Em O Sétimo Selo, um cavaleiro interpretado por Max von Sydow volta das Cruzadas e encontra sua terra tomada pelo desespero e pela Peste Negra. Abordado pela Morte, ele tenta postergar o momento inevitável por meio de um jogo de xadrez com a figura encapuzada – e ganhar tempo para encontrar, sem grande sucesso, provas de que os homens merecem viver. O Sétimo Selo mesmerizou platéias em todo o mundo e anunciou um novo cinema, ambientado nas paisagens mais desoladas da alma. Poucos meses depois, Bergman lançou Morangos Silvestres, no qual um velho professor envereda pelas trilhas de sua memória – que, novamente, o conduzem sempre para mais perto da morte. O diretor tinha então apenas 39 anos. Mas é seguro dizer que, até seu duplo feito, a angústia do fim nunca havia sido tratada pelo cinema de forma tão decisiva e incisiva. O cineasta, porém, ainda teria muito a dizer a esse respeito – uma meia centena de filmes, mais inúmeras produções para a televisão e para o teatro. Nas duas últimas décadas, afastado da câmera, Bergman vira sua influência retroceder e, aos poucos, se dissipar. Na manhã da segunda-feira passada, contudo, ela subitamente recuperou sua nitidez. Ingmar Bergman, que completara 89 anos em 14 de julho, morreu durante o sono, em seu refúgio na ilha báltica de Faro – e levou consigo a hipótese de um cinema que escape às convenções de gênero e possa se impor como uma forma de pensamento e de poesia.
A ascensão de Bergman deu-se no fim dos anos 50, quando o cinema de autor, representado por nomes do porte de Federico Fellini e Michelangelo Antonioni, se revelara a grande força criativa da época. Sua obra, contudo, tinha um forte cunho religioso, além de uma severidade que contrastava vivamente com boa parte da produção do período. Bergman tinha uma ligação profunda com a tradição cinematográfica escandinava, que fez dos encontros entre luz e escuro, e entre terra e mar, tão dominantes em sua paisagem, também o seu principal espaço psicológico. Auxiliado por seu diretor de fotografia, Sven Nykvist (morto no ano passado), Bergman esquadrinhou esse espaço como ninguém antes ou depois dele. Na sua primeira fase, da qual a figura alongada e os traços austeros de Max von Sydow foram o maior emblema, Bergman tratou principalmente do vazio que se interpõe entre o homem e Deus. A esse momento é que pertencem O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. Sua segunda fase foi ainda mais brilhante. Depois de uma cirurgia, o diretor descobriu que havia perdido o medo da morte. Seu vazio, então, se transferiu para outro domínio: o das relações humanas. Von Sydow foi substituído por um ator de aparência mais terrena – Erland Josephson –, e a distância de que Bergman passou a tratar é aquela que homens e mulheres, pais e filhos ou irmãs e irmãos tentam vencer. O que só conseguem fazer, em geral, quando desejam se ferir.
“Eu sempre soube atrelar meus demônios à minha carroça. Eles continuam me atormentando, mas eu os obrigo a me ser úteis”, disse Bergman. Essa, de certa forma, é a razão pela qual ele deixou muitos admiradores, mas nenhum pupilo de fato, a despeito dos esforços de John Cassavetes e Woody Allen: seus demônios simplesmente eram mais potentes que os da maioria dos mortais. Na visão de Bergman, até buscar o amor é uma forma de redenção que quase sempre termina em mais danação. Em Gritos e Sussurros, três irmãs, uma delas à morte, tentam obter alguma conciliação, mas só fazem se dilacerar ainda mais. Em Sonata de Outono, o encontro entre uma mãe e uma filha é uma batalha de ressentimentos em que só vence quem perder mais. Em Cenas de um Casamento, de 1973, talvez sua obra máxima, o espectador acompanha a lenta e crudelíssima derrocada do casamento de Johan e Marianne, interpretados por Josephson e Liv Ullmann. Em seu último filme, Saraband, feito para a televisão há quatro anos, foi a Johan e Marianne que o diretor decidiu voltar. Mas o amor dos dois foi reduzido a uma presença tênue. O que está vivo, no filme, é o rancor, em especial aquele que palpita entre Johan e seu filho sessentão. Liv Ullmann, uma das várias mulheres com quem o diretor foi casado e sua musa mais constante, teorizou que Bergman teria feito Saraband para exorcizar um pouco da dor de haver perdido um de seus nove filhos sem ter feito as pazes com ele. É típico do diretor, porém, que essa expiação tenha chegado à tela em forma de franqueza brutal, em que expor o ódio é um tributo mais genuíno do que ceder aos lamentos da memória.
“Toda a minha vida criativa provém de minha infância”, disse Bergman. “A razão por que apreciam o que faço é que eu sou uma criança e assim me dirijo à platéia.” Filho de Erik, um pastor luterano, e de Karin, uma mulher que oscilava de forma atordoante entre o calor e a frieza, Ingmar aprendeu desde muito cedo a vasculhar a fisionomia dos dois em busca de sinais do que estaria por vir. Por exemplo, a rejeição por parte da mãe ou a ira do pai, que acarretava castigos terríveis – como trancar o filho num armário escuro ou espancá-lo e então obrigá-lo a beijar sua mão –, relembrados em detalhes pungentes em seu último trabalho cinematográfico, Fanny e Alexander, de 1982, no qual rememorou sua infância traumática e, com ela, obteve seu maior sucesso comercial. Essa habilidade de Bergman em ler rostos rendeu-lhe a reputação de que seu olhar era uma lente que tudo via, e tornou-o o mestre maior do close-up. Não o close-up glamouroso de Hollywood, mas um close-up que despia seus atores (e mais ainda suas atrizes) de todas as máscaras e defesas. “Durante boa parte de minha vida, menti e menti. Quando estava rodando Noites de Circo, em 1953, eu me dei conta de que a mentira era como uma sujeira sobre meus filmes, e que a partir dali eu deveria dizer a verdade todos os minutos da minha vida”, contou certa vez. Até onde se sabe, Bergman se manteve fiel à decisão. Quando não mais se sentiu capaz de se expor, retirou-se para a Ilha de Faro e se isolou. Sua volta foi sempre uma hipótese. Desde segunda-feira, porém, o território que ele desbravou com coragem ímpar – o território da dúvida, no qual os seres humanos são obrigados a existir – está oficialmente sem um explorador à altura de mapeá-lo.