Armas na Mesa
Nada como uma ruiva estupidamente gelada. E ainda assim Jessica Chastain ficou de fora do Oscar
O cabelo ruivo e o batom carmin contrastando com a pele cor de leite compõem uma escolha interessante: lobistas em geral são retratados como pessoas que se movem nas sombras e nos bastidores, mas a tática de Elizabeth Sloane é abertamente ofensiva – não há como não notá-la onde quer que ela esteja. E, nos círculos de Washington nos quais ela é conhecida (todos os que interessam), não há quem não reaja (com medo, com admiração ou ambos) à sua franqueza e eficiência enregelantes. Mais ou menos como Isabelle Huppert em Elle, aqui Jessica Chastain acha tanta vida e nuance em uma personagem à primeira vista antipática que, quase de imediato, a plateia está na mão dela. Ou pelo menos aquela parte da plateia (é o meu caso) que adora filmes sobre pessoas assustadoramente profissionais fazendo trabalhos tremendamente complicados e se comunicando com diálogos fabulosamente articulados. Você não gosta de A Grande Aposta, Margin Call, A Negociação, Conduta de Risco ou dos filmes e séries de Aaron Sorkin (A Rede Social, Steve Jobs, The West Wing, The Newsroom)? Então deixe Armas na Mesa para lá, porque o roteiro de Jonathan Perera vai firme nessa linha. Gosta? Então é a sua praia esse trabalho de estreia de Perera, um advogado que conseguiu fazer seu script chegar intacto, sem interferência, ao diretor John Madden.
Nos Estados Unidos, a atividade de lobista é legal (embora cheia de zonas cinzentas). Há uns 30 000 deles em Washington, trabalhando para influenciar legisladores sobre tópicos de interesse deste ou daquele grupo – aborto, casamento gay, taxas de importação, embargos comerciais ou o que for. Elizabeth Sloane faz parte de uma pequena elite dentre essa gente, os lobistas que são considerados artilharia pesada e que, pela simples associação com um tópico, já fazem a balança pender (Perera se inspirou numa figura real, Jack Abramoff, para criar a personagem). O chefe de Elizabeth entrega a ela um cliente que vale ouro: os fabricantes de armas, interessados em centrar força sobre a metade feminina do eleitorado – de onde tradicionalmente vem o apoio à ideia de uma legislação que restrinja a venda de armas a civis. Elizabeth não apenas ri na cara do cliente, como se passa para o campo adversário – a pequena firma de lobby do idealista interpretado por Mark Strong.
Para uma mulher que não tolera perder, é estranha a associação com os eternamente derrotados partidários do controle de armas. Mais estranho ainda é que Elizabeth acha que pode ganhar, apesar de ter virado a personagem principal de uma CPI (manobra de seu antigo chefe). Por que uma mulher sem moral, sem escrúpulos, sem afiliação a nenhuma causa e sem qualquer consideração pelos sentimentos alheios entrou em uma cruzada quixotesca como essa? A revelação gradual dos “comos” e “porquês” dessa atitude é eletrizante, e não só pelo roteiro muito bem bolado (embora às vezes improvável) de Perera, ou pelo desempenho tão vigoroso de Jessica Chastain, que sugere um vulcão por baixo daquele gelo todo, e do restante do elenco. O inglês John Madden é uma espécie de pistoleiro de aluguel: dirige de tudo, desde coisas adocicadas como Shakespeare Apaixonado, Capitão Corelli e O Exótico Hotel Marigold até dramas (Sua Majestade Mrs. Brown e Ethan Frome) e suspenses (Killshot e A Grande Mentira), com resultados desiguais e sem deixar uma marca pessoal em nada. A escorregadia Elizabeth Sloane deve ter falado de perto a ele, porque pela primeira vez vejo Madden se mostrar um diretor incisivo, pessoalmente envolvido e disposto a se enfronhar num combate corpo a corpo com uma protagonista. Até as pessoas que topam tudo de vez em quando encontram alguma coisa que não tem preço.
Trailer
ARMAS NA MESA (Miss Sloane) Estados Unidos/França, 2016 Direção: John Madden Com Jessica Chastain, Mark Strong, Gugu Mbatha-Raw, Sam Waterston, John Lithgow, Mark Stuhlbarg, Alison Pill, Jake Lacey, Dylan Baker Distribuição: Paris Filmes |