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Já se falou demais das grosserias de Silvio Santos

E, no entanto, este blog, com alguma reticência, repisa o tema: mais uma opinião sobre o assunto, em um tempo ensurdecido pela estridência das opiniões

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h10 - Publicado em 15 nov 2018, 20h47

A Folha, na edição de ontem, informa que no Brasil, em 2017, houve  60.018 estupros, em uma média de 164 por dia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O dado alarmante não aparece em uma matéria sobre crimes sexuais no caderno Cotidiano, mas na capa da Ilustrada. Pois Silvio Santos — todos já viram o vídeo nas redes sociais — disse uma grosseria para Claudia Leitte durante a apresentação de um programa filantrópico em sua emissora. O homem declara que, aos 87 anos, ainda se sente estimulado (perdoem o eufemismo) pelo vestido curto da cantora, e de algum modo isso é relacionável, ou comparável, ao estupro. Aliás, a precisos 60.018 estupros.

Há uma desproporção descomunal entre a baixaria do apresentador de TV e as tenebrosas estatísticas criminais do país. Alguém dirá que, por apontar tal desproporção, eu estaria relativizando o machismo de Silvio Santos. Mas e daí?  Imagino que Silvio Santos tenha uma bela piscina em sua casa em Orlando, mas estou certo de que a piscina não comporta o volume de água que encontramos na Fossa das Marianas. Está aí: relativizei o machismo e a piscina de Silvio Santos. 

Nada disso é para desculpar Silvio Santos. Sequer compro a débil justificativa de que Silvio é homem de outra geração, incapaz de atualizar o SBT aos ditames virtuosos do momento #MeToo que já tomou a Globo quando José Meyer caiu em desgraça. Declarar a uma mulher, em rede nacional, que seu vestido provoca ereções (perdoem a linguagem franca) é uma atitude porca. Mas agravar as impropriedades do apresentador evocando casos de violência sexual ou ataques contra minorias não acrescenta ao argumento: só eleva a estridência retórica. Os 60.018 estupros saem diminuídos, trivializados, quando convertidos em régua para a etiqueta do Teleton. “Que escândalo! Vejam como Silvio Santos se comporta no país em que se cometem 164 estupros por dia.”

Em um país com 82 estupros diários as obscenidades do apresentador seriam 50% mais aceitáveis?

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Seria plausível imaginar que um utópico país onde não existisse estupro — uma cidade submersa, protegida por uma gigantesca bolha de ar nas Fossas Marianas — registraria um inaudito surto de crimes sexuais se as televisões locais começassem a transmitir a programação do SBT?

Parece haver quem pense que sim.

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O salto entre a salivação cafajeste de Silvio Santos e o estupro costuma ser amparado pela noção de “violência simbólica”. As ofensas, as grosserias, as piadas baixas que se fazem contra mulheres, gays, negros, minorias teriam o poder de justificar, legitimar, talvez até incentivar crimes de ódio. Houve até quem acreditasse que comerciais de cerveja com mulher gostosa teriam seu peso nos altos índices de violência sexual do país (de uns anos para cá, os publicitários buscaram temas menos sensuais para vender seus fermentados, mas a mudança, salvo engano, não produziu resultados notáveis na segurança pública).

O nexo causal entre a tirada machista e a violência física não é tão fácil de demonstrar. Mas a hiper-sensibilidade progressista não parece mais capaz de discernir as esferas da opinião e da realidade, a ponto da tal violência simbólica suscitar mais indignação do que a violência física efetiva.  Lembro de outro escândalo do SBT, em 2014. Um bando de trogloditas, no Rio de Janeiro, prendeu o pescoço de um pivete a um poste com uma trava de bicicleta. Em um jornal da rede de Silvio Santos, Rachel Sheherazade — ah, esse inacreditável nome que evoca os prazeres do harém e o fio das cimitarras! — fez um discurso rábido em defesa dos cidadãos de bem que tomaram a justiça nas próprias mãos. Eu me lembro de manifestos, abaixo-assinados, manifestações públicas contra a apresentadora das Mil Noites e uma Noite.
Não me lembro de ninguém pedindo a punição dos homens que agrediram o pivete.

 

***

“A opinião é antes de mais nada uma potência formal, um virtuosismo que cresce sem fim, que ataca qualquer material”, diz  Roberto Calasso, tremendo ensaísta italiano, em Da Opinião, texto coligido em Os 49 Degraus. O personagem central de Calasso nesse ensaio é o grande aforista Karl Krauss (1874-1936). “A opinião pode falar de tudo, mas não pode dizer tudo”: esta foi, segundo Calasso, a grande descoberta de Krauss.  O crítico austríaco que tanto atacava o desvario opinativo, a doxa ensandecida, o império do lugar-comum promovidos pela velha imprensa — o que ele diria hoje de Facebook e Twitter?

E o que diria da imprensa que corre esbaforida atrás do que seus leitores já leram nas redes sociais? Eis a matéria da Folha de S. Paulo que citei acima: um diligente apanhado das repercussões da estupidez de Silvio Santos. Aprendemos ali que Danilo Gentili saiu em defesa de seu patrão no Twitter, e que um post do #342Artes contra o apresentador “viralizou”. É uma crônica desse virtuosismo que cresce sem fim — a opinião.

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Falo da reportagem da Ilustrada, mas poderia falar de tantos outros textos. Eu mesmo já terei escrito matérias repercutindo a repercussão de certo evento nas redes, e como editor terei pautado reportagens nessa toada. Talvez seja o momento de nós, jornalistas, nos recusarmos a ser a câmera de eco da glossolalia da internet. Até porque a própria internet faz bem melhor o papel de câmera de eco.

***

Nos meios de esquerda, falava-se antigamente do “marxismo vulgar”– a aplicação mecânica e simplista dos conceitos de velho Marx para tratar de todo e qualquer evento.

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Pois hoje temos o conservadorismo vulgar. Que recentemente caiu de amores por Silvio Santos.

Silvio Santos é um homem vulgar. Sua carreira de empresário do entretenimento foi montada sobre a habilidade ímpar de falar — e vender –ao vulgo. As vulgaridades que disse a Claudia Leitte talvez tenham excedido até seus próprios parâmetros, mas não chegam a surpreender.

E eis que a nova direita brasileira, no seu afã de gritar mais do que o progressismo histérico, cerra fileiras com o apresentador do SBT e ataca Claudia Leitte. Estão aí os memes — veículo por excelência da opinião que fala de tudo e não diz nada — para lembrar que a cantora também já fez brincadeiras deselegantes em shows de calouros. Ou para compará-la desfavoravelmente a Ivete Sangalo – pois o Burke do subúrbio e o T.S. Eliot dos grotões exerce seu fino apuro estético julgando qual sucesso do Carnaval da Bahia melhor representa a Civilização Judaico-Cristã Ocidental sitiada pelos bárbaros do Marxismo Cultural.

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O conservadorismo não se define apenas pelo repúdio agressivo a tudo o que a esquerda diz e faz, mas por toda uma atitude frente à vida, um ethos muito particular. O bom conservador deveria prezar a compostura social, a elegância no porte e na fala, o cavalheirismo. Deveria, sobretudo, cultivar aquele senso de propriedade que regra os espíritos vitorianos de todos os tempos (propriedade, aqui, não no sentido de posse: refiro-me à distinção do que é ou não apropriado para cada situação social). Mas nosso conservadorismo rastaquera espoja-se na linguagem mais chã e se compraz em esquisitas obsessões coprofílicas. É apenas natural que o conservador brasileiro julgue muito apropriado que um senhor de idade provecta exalte seu priapismo intempestivo em rede nacional.

Não, eu mesmo não me defino como conservador. Mas ambicionaria certa qualidade que afasta o conservador de boa cepa do arrivista vulgar: o esnobismo em matéria cultural. Se alcançasse tal ambição, é verdade, jamais teria dedicado meu tempo e minha escrita às licenciosidades senis de um animador de auditório.
Eis aí minha opinião.

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