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Palavras, palavras

Traço comum nos programas de governo no Brasil é a generalidade. Lula agora faz a mesma coisa, só que deu uma exagerada

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 11 jun 2022, 08h00

Ninguém costuma dar muita bola para planos de governo no Brasil. “Treino é treino, jogo é jogo”, costumava dizer um político experiente. Depois que a lógica do marketing tomou conta da política, o mantra virou “Programa é peça de campanha”, então “cuidado com o que você escreve lá.” De qualquer modo, fui ler o pré-­programa do Lula para a Presidência. Farei o mesmo com o do Bolsonaro, quando ele aparecer.

O programa não me surpreendeu. Me deu até certa tristeza, não com o PT, até porque duvido que outros partidos, com exceção do Ciro Gomes, farão algo muito diferente. A tristeza é com o estado de coisas de nosso debate político. O problema começa com o diagnóstico. O texto segue a lógica comum da “política de combate”, na qual não se pode fazer concessão alguma ao inimigo. O Brasil surge como “um país devastado por um processo de destruição que nos trouxe de volta a fome, o desemprego, a inflação”. Achei curiosa a menção ao desemprego, que caiu de 14,8% para 10,5% desde o pico da pandemia. O índice foi de menos de 7% a mais de 13% na grande crise de 2015/2016, no fim da era Dilma. Outro ponto é a fome. Foi justamente na crise vivida no fim da era petista que o número de brasileiros abaixo da linha de miséria foi de 9 milhões para mais de 13 milhões (entre 2014 e 2017). Depois houve outra forte expansão, durante a pandemia, com o problema apenas parcialmente atenuado com o auxílio emergencial e o Auxílio Brasil. Hoje temos uma transferência de renda com o dobro do valor do que tínhamos em 2019. Mas isso está longe de resolver o problema, e o pior cenário é tornar um tema sério como esse um fla-flu entre governos. O ponto é observar a realidade, assumir responsabilidades e não fazer discurso vazio. É isso que se espera de um programa de governo, seja de oposição, seja de situação.

Traço comum nos programas de governo no Brasil é a generalidade. Lula agora faz a mesma coisa, só que deu uma exagerada. Sua pré-proposta tem noventa parágrafos. Em dez deles consegui identificar alguma proposta objetiva, do tipo “não privatizar os Correios”. Nos demais, palavras e boas intenções. Algum projeto para a população LGBTQIA+? “Políticas que garantam os direitos, o combate à discriminação.” Para a juventude? “Políticas que viabilizem ‘novas e mais oportunidades’”. E para as pessoas com deficiência? Políticas que “assegurem a todos o direito à vida com dignidade e liberdade”. Por fim, a “dignidade humana para todos os brasileiros e brasileiras”. Ufa. Já havia visto programas pautados pelo palavrório genérico, mas talvez esse tenha chegado perto do estado da arte.

Outra marca é a ambiguidade. Coisas do tipo “assegurar às mulheres o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”. Perguntei a algumas pessoas o que significaria essa frase. Algumas responderam rápido: “aborto”; outras disseram que seria o “direito de viver plenamente sua sexualidade”. Concluí o óbvio: pode significar qualquer coisa. Em outra parte, o texto diz que “a proteção previdenciária voltará a ser um direito de todos”. Também tentei entender. Há quem diga que significa refazer a reforma da Previdência; outros, que seria algo na linha de ampliar o BPC, ou “qualquer coisa que inclua todo mundo”, como me definiu um simpatizante meio impaciente. Conclusão: pode ser que sim, mas também pode ser que não.

“No Brasil, o traço comum nos programas de governo é a generalidade”

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A generalidade tem lógica. Os políticos sabem que os eleitores têm pouca informação e que políticas públicas são complicadas. Para que detalhar qualquer coisa? Outra razão diz respeito ao poder. O melhor, me dizia um velho prefeito, é “chegar àquele gabinete não amarrado com nada”. Fazer o que der na telha, atender aos lobbies que se quiser, financiar este ou aquele setor. Ninguém resumiu isso melhor do que o mestre do maquiavelismo político moderno, Talleyrand, ministro de Napoleão, que costumava dizer que “princípios são bons, pois não amarram ninguém”. Ele seguia à risca o princípio, para não obrigar o imperador a nada quando ocupasse um território.

Há algumas afirmações objetivas no programa. Uma delas fala em revogar a reforma trabalhista. O Brasil vem recuperando empregos, e a reforma mal completou cinco anos. Há quem tenha certas restrições a nosso gosto pelo experimentalismo institucional. Mas está lá. O partido também fixa posição contra a volta do imposto sindical. Bom sinal. Outra passagem diz não só que não haverá privatização da Petrobras, como o governo intervirá na empresa para que ela seja “colocada de novo a serviço do povo e não dos grandes acionistas estrangeiros”. Imagino que isso terá algum efeito em seu valor de mercado. Isto se algum investidor levar a sério a afirmação. Ainda outra passagem diz que Lula terminará com o teto de gastos, de modo que teremos um “sistema fiscal compatível com a responsabilidade social”. O teto, vale lembrar, foi feito exatamente porque falhamos miseravelmente em conter a bancarrota fiscal, sempre em nome de gastos “socialmente necessários”. Talvez fosse interessante explicar por que isso seria diferente desta vez.

O PT é um partido relevante em nossa história recente. Em certos momentos, foi capaz de produzir grandes inovações, como o ProUni, o Bolsa Família, a Lei das PPPs, de 2004, a chancela do marco regulatório da sociedade civil, em 2014, e experiências modernas de gestão, em parceria com o setor privado. Ainda por esses tempos observava isso de perto, estudando as PPPs na área hospitalar do governo petista na Bahia. O partido tem agora a chance real de voltar ao poder e pode escolher um caminho. Afirmar-se como uma social-democracia modernizante, como o que fizeram tantos partidos social-democratas mundo afora, ou repetir os velhos cacoetes da esquerda latino-americana. O velho desprezo pela responsabilidade fiscal, a tradicional confusão entre o público e o estatal, o desprezo pelos ganhos da economia de mercado e do foco na produtividade, em especial para os mais pobres.

Agora que Lula tem um tucano histórico como vice, poderia levar a sério o “choque de capitalismo” que um outro tucano histórico, Mario Covas, pregou solitário naquela primeira eleição da redemocratização, em 1989. O primeiro esboço do programa de Lula não traz aceno nessa direção. Ao contrário, ele parece materializar outra frase de Talleyrand, dita quando da restauração dos Bourbon, depois de Waterloo: “Nada esqueceram, nada aprenderam”. A jornada ainda está no início, e tudo sempre pode mudar. Oxalá. Não acho que o Brasil deseje ser governado, mais uma vez, com os olhos grudados no retrovisor.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793

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