Palavras, palavras
Traço comum nos programas de governo no Brasil é a generalidade. Lula agora faz a mesma coisa, só que deu uma exagerada
Ninguém costuma dar muita bola para planos de governo no Brasil. “Treino é treino, jogo é jogo”, costumava dizer um político experiente. Depois que a lógica do marketing tomou conta da política, o mantra virou “Programa é peça de campanha”, então “cuidado com o que você escreve lá.” De qualquer modo, fui ler o pré-programa do Lula para a Presidência. Farei o mesmo com o do Bolsonaro, quando ele aparecer.
O programa não me surpreendeu. Me deu até certa tristeza, não com o PT, até porque duvido que outros partidos, com exceção do Ciro Gomes, farão algo muito diferente. A tristeza é com o estado de coisas de nosso debate político. O problema começa com o diagnóstico. O texto segue a lógica comum da “política de combate”, na qual não se pode fazer concessão alguma ao inimigo. O Brasil surge como “um país devastado por um processo de destruição que nos trouxe de volta a fome, o desemprego, a inflação”. Achei curiosa a menção ao desemprego, que caiu de 14,8% para 10,5% desde o pico da pandemia. O índice foi de menos de 7% a mais de 13% na grande crise de 2015/2016, no fim da era Dilma. Outro ponto é a fome. Foi justamente na crise vivida no fim da era petista que o número de brasileiros abaixo da linha de miséria foi de 9 milhões para mais de 13 milhões (entre 2014 e 2017). Depois houve outra forte expansão, durante a pandemia, com o problema apenas parcialmente atenuado com o auxílio emergencial e o Auxílio Brasil. Hoje temos uma transferência de renda com o dobro do valor do que tínhamos em 2019. Mas isso está longe de resolver o problema, e o pior cenário é tornar um tema sério como esse um fla-flu entre governos. O ponto é observar a realidade, assumir responsabilidades e não fazer discurso vazio. É isso que se espera de um programa de governo, seja de oposição, seja de situação.
Traço comum nos programas de governo no Brasil é a generalidade. Lula agora faz a mesma coisa, só que deu uma exagerada. Sua pré-proposta tem noventa parágrafos. Em dez deles consegui identificar alguma proposta objetiva, do tipo “não privatizar os Correios”. Nos demais, palavras e boas intenções. Algum projeto para a população LGBTQIA+? “Políticas que garantam os direitos, o combate à discriminação.” Para a juventude? “Políticas que viabilizem ‘novas e mais oportunidades’”. E para as pessoas com deficiência? Políticas que “assegurem a todos o direito à vida com dignidade e liberdade”. Por fim, a “dignidade humana para todos os brasileiros e brasileiras”. Ufa. Já havia visto programas pautados pelo palavrório genérico, mas talvez esse tenha chegado perto do estado da arte.
Outra marca é a ambiguidade. Coisas do tipo “assegurar às mulheres o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”. Perguntei a algumas pessoas o que significaria essa frase. Algumas responderam rápido: “aborto”; outras disseram que seria o “direito de viver plenamente sua sexualidade”. Concluí o óbvio: pode significar qualquer coisa. Em outra parte, o texto diz que “a proteção previdenciária voltará a ser um direito de todos”. Também tentei entender. Há quem diga que significa refazer a reforma da Previdência; outros, que seria algo na linha de ampliar o BPC, ou “qualquer coisa que inclua todo mundo”, como me definiu um simpatizante meio impaciente. Conclusão: pode ser que sim, mas também pode ser que não.
“No Brasil, o traço comum nos programas de governo é a generalidade”
A generalidade tem lógica. Os políticos sabem que os eleitores têm pouca informação e que políticas públicas são complicadas. Para que detalhar qualquer coisa? Outra razão diz respeito ao poder. O melhor, me dizia um velho prefeito, é “chegar àquele gabinete não amarrado com nada”. Fazer o que der na telha, atender aos lobbies que se quiser, financiar este ou aquele setor. Ninguém resumiu isso melhor do que o mestre do maquiavelismo político moderno, Talleyrand, ministro de Napoleão, que costumava dizer que “princípios são bons, pois não amarram ninguém”. Ele seguia à risca o princípio, para não obrigar o imperador a nada quando ocupasse um território.
Há algumas afirmações objetivas no programa. Uma delas fala em revogar a reforma trabalhista. O Brasil vem recuperando empregos, e a reforma mal completou cinco anos. Há quem tenha certas restrições a nosso gosto pelo experimentalismo institucional. Mas está lá. O partido também fixa posição contra a volta do imposto sindical. Bom sinal. Outra passagem diz não só que não haverá privatização da Petrobras, como o governo intervirá na empresa para que ela seja “colocada de novo a serviço do povo e não dos grandes acionistas estrangeiros”. Imagino que isso terá algum efeito em seu valor de mercado. Isto se algum investidor levar a sério a afirmação. Ainda outra passagem diz que Lula terminará com o teto de gastos, de modo que teremos um “sistema fiscal compatível com a responsabilidade social”. O teto, vale lembrar, foi feito exatamente porque falhamos miseravelmente em conter a bancarrota fiscal, sempre em nome de gastos “socialmente necessários”. Talvez fosse interessante explicar por que isso seria diferente desta vez.
O PT é um partido relevante em nossa história recente. Em certos momentos, foi capaz de produzir grandes inovações, como o ProUni, o Bolsa Família, a Lei das PPPs, de 2004, a chancela do marco regulatório da sociedade civil, em 2014, e experiências modernas de gestão, em parceria com o setor privado. Ainda por esses tempos observava isso de perto, estudando as PPPs na área hospitalar do governo petista na Bahia. O partido tem agora a chance real de voltar ao poder e pode escolher um caminho. Afirmar-se como uma social-democracia modernizante, como o que fizeram tantos partidos social-democratas mundo afora, ou repetir os velhos cacoetes da esquerda latino-americana. O velho desprezo pela responsabilidade fiscal, a tradicional confusão entre o público e o estatal, o desprezo pelos ganhos da economia de mercado e do foco na produtividade, em especial para os mais pobres.
Agora que Lula tem um tucano histórico como vice, poderia levar a sério o “choque de capitalismo” que um outro tucano histórico, Mario Covas, pregou solitário naquela primeira eleição da redemocratização, em 1989. O primeiro esboço do programa de Lula não traz aceno nessa direção. Ao contrário, ele parece materializar outra frase de Talleyrand, dita quando da restauração dos Bourbon, depois de Waterloo: “Nada esqueceram, nada aprenderam”. A jornada ainda está no início, e tudo sempre pode mudar. Oxalá. Não acho que o Brasil deseje ser governado, mais uma vez, com os olhos grudados no retrovisor.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793