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Os dois Brasis

Por que negar aos mais pobres o mesmo direito que as famílias de maior renda jamais abririam mão?

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 13 ago 2022, 08h00

Nos últimos tempos convivi com famílias escolhendo a escola dos filhos. É uma maratona. Colégio laico ou confessional? Escola com pátio grande? Bilíngue? Colégio que ensina por projetos, ou do jeito tradicional? No fim se mistura tudo, comparam-se os rankings, o preço, a distância de casa, e toma-se a decisão. É um mundo incrível, feito de expectativas sobre o futuro e um discreto orgulho. Com um pequeno problema: ele só funciona para 16% das crianças no Brasil. Os outros 84% vão para a escola pelo CEP. Por ideologia, pressão corporativa, ou pela simples omissão da sociedade, decidimos o seguinte: faremos um país separando as crianças e dois mundos, pelo critério de renda. É um tipo de apartheid educacional, com o qual nos acostumamos a conviver.

Se a família tiver dinheiro, fica de um lado. Não precisa ser uma escola inglesa. Pode ser uma escola confessional bem-arrumada, que pode custar um pouco mais ou um pouco menos. Se não tiver, vai para uma escola do governo. São dois universos distintos. O primeiro tira, em média, notas um terço ou mais acima do outro no Enem; no Pisa, o teste da OCDE, um deles tem nota próxima à dos alunos americanos, e o outro termina sistematicamente nas últimas posições. Um mundo seguiu com aulas durante a pandemia, o outro parou. Nossos especialistas dirão que a culpa é da pobreza. Que os resultados ruins nada têm a ver com a condição das escolas, o troca-troca dos governos, o mando dos sindicatos. Sua visão expressa um tipo de rendição. É como se o resultado da educação já estivesse decidido desde o início, e não fosse exatamente a função do Estado garantir aos mais vulneráveis as condições para aprender.

O lado mais cruel disso tudo é a segregação. A revista Nature publicou um amplo estudo mostrando o peso das conexões sociais para o sucesso profissional. O estudo foi coordenado pelo economista Raj Chetty, de Harvard, com dados extraídos de 21 bilhões de conexões no Facebook, cobrindo 84% dos adultos americanos entre 25 e 44 anos. A conclusão é clara: conviver com colegas de famílias de maior renda na escola aumenta as chances de ascensão social. “O que realmente importa”, diz Chetty, “são as interações que influenciam as pessoas”. E completa: “Trata-se de “moldar aspirações”, atalho para laços reais decisivos para a vida. “Se você nunca conheceu alguém que fez faculdade”, diz o pesquisador, “terá menos estímulo para buscar uma faculdade ou um lugar como Harvard.”

Se queremos uma sociedade com mobilidade social, capaz de reduzir a desigualdade, um bom lugar para começar é romper com nosso apartheid educacional. Na prática, há três desafios. O primeiro é garantir que os alunos de menor renda estudem em escolas com qualidade similar a de seus pares de maior renda; o segundo é permitir que estudem juntos. Compartilhem de um mesmo mundo social, na linha do que mostrou a pesquisa; o terceiro é o direito à escolha. O mesmo que a maioria dos que estão lendo esta coluna jamais abriria mão. É utopia? Não acho. É apenas uma questão de mudar o disco. Sair do discurso fácil que confunde educação pública com educação estatal. E começar a agir.

“Por que negar aos mais pobres o mesmo direito que as famílias de maior renda jamais abririam mão?”

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As alternativas estão aí. Uma delas é o sistema de parcerias com o setor privado. O último estudo disponível sobre as escolas Charter, em Nova York, mostrou que o desempenho dos alunos em redes estruturadas, a exemplo da Kipp e Success Academy, equivale a 103 dias a mais de aprendizado em matemática, comparativamente a seus pares em escolas públicas tradicionais. Isso significa um desempenho 50% superior. Há poucos exemplos por aqui nessa direção. Em Porto Alegre, visitei uma escola católica com metade dos alunos pagantes, metade bolsistas a partir de um contrato com a prefeitura. A diretora que me disse o seguinte: “Aqui, não faz a menor diferença quem é bolsista e quem é pagante”. Enfrentam-se ao menos dois daqueles desafios, quebrando-se, ao menos em parte, a segregação econômica. Em São Paulo, a vereadora Cris Monteiro apresentou um projeto nessa direção. Ele foi imediatamente bombardeado com os argumentos de sempre, cuja síntese é: tudo que não seja o monopólio estatal sequer deve ser considerado. Os alunos não estão aprendendo como deveriam? Paciência.

Outro modelo é o financiamento direto dos estudantes. São os modelos de voucher, que têm no Brasil uma história de sucesso: o ProUni. Criado em 2004, o programa já ofereceu perto de 3 milhões de bolsas. Burocracia quase nenhuma, custo baixo, direito de escolha. E desempenho: os alunos com bolsa integral têm nota média 10% superior a dos não bolsistas no Enade. Se a estratégia funciona bem no ensino superior, por que nada parecido foi tentado no ensino básico? Dirão que não funciona, que é o “desmonte” da escola pública. Todo o discurso que já conhecemos. Exatamente o que se escutava sobre o ensino superior antes do ProUni. Até que alguém foi lá e fez. E ninguém mais reclamou.

A boa notícia é que há uma revolução silenciosa acontecendo no país. Ela não é conduzida por nenhum partido ou esfera de governo, em particular. Na Bahia, comandada pelo PT, hospitais públicos, como o Hospital do Subúrbio, são geridos por empresas privadas, via PPPs; em São Paulo, sob a batuta do PSDB, um grupo de excelência, como o Sírio-­Libanês, administra o hospital regional de Jundiaí, também público e gratuito. Nossos aeroportos vão sendo concedidos à gestão privada, e vão ganhando ares de primeiro mundo. O mesmo ocorre com nossos parques ambientais, de Fernando de Noronha aos Aparados da Serra, no sul do país. Ainda por estes dias li que a Praia de Botafogo voltou a ser balneável, meses depois da privatização da Cedae, e a partir de iniciativas bastante óbvias dos novos gestores. Alguma mágica? Nenhuma. Apenas especialização. Bons contratos, fixação de metas e premiação por resultados. Nos anos 80, acreditávamos que aeroportos e empresas de telefonia eram “estratégicos”, e deviam ser estatais. Depois aprendemos que estratégico era ter aeroportos, estradas ou hospitais que funcionam, e que as coisas iriam melhor se o governo se especializasse na regulação, e não na execução direta dos serviços.

Apenas na educação não aprendemos. Exatamente ali, onde mais precisamos inovar e dar um salto civilizatório, concentramos todo o nosso corporativismo. Fizemos a aposta nos dois Brasis. Um feito de liberdade, para quem dispõe de renda, e o outro segregado, que ensina pouco e alimenta nossa desigualdade ancestral. Talvez isso aconteça porque nossa elite está bem servida pelo setor privado. Ou apenas por um problema de inércia. De qualquer modo, em um ano no qual passamos o país a limpo, é sempre preciso renovar a esperança.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802

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