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O toque de Neymar

O debate público migra em larga escala para o terreno da rigidez moral

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 out 2022, 08h00

A eleição corre dentro da mais perfeita previsibilidade. De um lado, a conversa do “genocida”, do “risco democrático”; de outro, a “roubalheira da era petista”. Nem mesmo “ofensas novas”, me comentou um conhecido, conseguimos escutar. Não sei se concordo. Nos dias seguintes à eleição, já ouvíamos falar de um “pacto diabólico com a maçonaria”, e coisas do tipo. No meio do imenso besteirol, chamou atenção um fato prosaico: a suspensão do programa de governo, por parte de Lula. “Pra não dar polêmica”, explicou alguém da campanha. Achei curioso. Em algum lugar dos velhos manuais sobre a democracia estava escrito que as eleições eram exatamente sobre isso: a “polêmica” em torno de programas. No mundo das fadas, claro.

Bolsonaro não anda longe disso. De um lado, seu padrão de incerteza é menor. Ele tem um programa devidamente publicado, e todos sabem quem conduzirá a economia e como Paulo Guedes pensa. A incerteza está em outro terreno: a insistência inconveniente no tema das urnas eletrônicas. Ainda durante as eleições, Bolsonaro tergiversou sobre aceitar ou não os resultados das urnas, sugerindo que vai verificar se as eleições foram “limpas”. Acontece que não cabe a ele, e sim à Justiça Eleitoral, decidir sobre isso. São as regras do jogo. O que ele faz, no fundo, é bater com a cabeça em uma parede. Algo na linha que ele fez em relação à vacinação, naqueles meses duros da pandemia.

Os políticos agem assim porque os eleitores topam. Jason Brennan dividiu os eleitores em três tipos: hobbits, hooligans e vulcanos. Os primeiros seriam os alienados. Alguns chamam de “maioria silenciosa”, talvez uns dois terços do eleitorado. Os segundos, a minoria barulhenta. A turma que fica batendo boca na internet, e dá o tom do debate público. Nenhum desses dois grupos dá muita bola para as ideias em disputa numa eleição. O primeiro, porque não presta atenção; o segundo, porque desde sempre já sabe de tudo. Sobrariam os vulcanos, eleitores do tipo racional. Espécies de nerds da democracia, donos de muita informação e baixa passionalidade. Seriam os eleitores ideais, mas são uma minoria irrelevante.

Dominado pela minoria barulhenta, o debate público migra em larga escala para o terreno da rigidez moral. Do mundo pragmático da política, em que buscamos consensos e ajustamos posições, escorregamos para um terreno hostil, avesso ao diálogo e à empatia, pautado pelo que Jonathan Haidt chamou de voluntarismo “moralista” (righteousness). Haidt é autor da conhecida metáfora do elefante e o condutor. O primeiro representa nossas intuições e emoções; o segundo, a razão e o bom senso. O problema é que “99% de nossos processos mentais ocorrem no lado do elefante, e apenas 1% do lado do condutor”. O condutor se converte em um retórico, em regra “racionalizando” nossos impulsos, em vez de efetivamente comandar nossas escolhas. E isso é particularmente ativado em contextos de incerteza e hostilidade, na era digital e das guerras culturais.

A eleição é um retrato disso. Por estes dias, li de uma colunista enfurecida dizendo não entender como esses “igno­rantes e negacionistas” puderam se eleger. Para ela, os “outros” eram essencialmente produto de um tipo misterioso de malignidade (que não entendi direito). No mesmo dia, também li que a culpa pela “tragédia iminente” era da ignorância. Apenas invertida: do “povo analfabeto” que não sabia votar. De um conhecido doutor, em um infalível grupo de Whats­App, li que “quem vota em fascista não é cidadão”. Como sempre faço, nessas situações, guardo o silêncio. Quando dá uma brecha, tento explicar que talvez esse tipo de visão hiperbólica da política seja fruto do contexto tribal em que habitamos, e expressa exatamente aquele moralismo boboca de que falava Haidt. Mas não adianta. Talvez seja mesmo mais excitante imaginar que o que está em jogo, nas eleições, é o “fechamento das igrejas”; ou o “fim da democracia. Ou a aposta no dualismo banal do “bem contra o mal”, supondo que exista algum acordo sobre o que essas palavrinhas significam. E por fim a ideia surrealista de uma guerra entre o “fascismo” e o “comunismo”. Se alguém disser isso a vocês, aconselhem a pessoa a sair um pouco da internet. E, no limite, procurar ajuda.

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“O debate público migra em larga escala para o terreno da rigidez moral”

Se os vulcanos comandassem o jogo político, a conversa seria outra. Toda vez que alguém falasse na “tragédia que irá se abater sobre nós” nestas eleições, seu “detector hiperbólico” imediatamente começaria a apitar. Ele tentaria algum critério mais objetivo para formar sua opinião. Tempos atrás sugeri que algo minimamente objetivo seriam as votações no Congresso, em temas chatíssimos como o teto de gastos, as reformas trabalhista e da Previdência, o marco do saneamento e afins. Os elefantes chiaram, o que não deixa de ser um bom sinal.

Nosso nerd democrático também entenderia como normal e legítimo, em uma sociedade diversa, que as pessoas façam escolhas diferentes. E que nem por isso elas são melhores ou piores. Ele entenderia o paradoxo contemporâneo: a terrível dificuldade de viver, no mundo real, segundo um valor que reconhecemos como crucial para a democracia: o valor do pluralismo. Um valor fundador da modernidade, que os iluministas nos pediram que aceitássemos, depois de dois ou três séculos de carnificina, na Europa das guerras de religião. E que não por acaso nasce no exílio. O exílio de Locke, o filósofo tranquilo, na Holanda, observando aquela onda de fugitivos do fanatismo católico de Luís XIV, na França, e percebendo que a Europa só teria paz se aceitasse a ideia da tolerância. Se o condutor, na metáfora de Haidt, voltasse de algum modo a comandar o elefante.

O problema com o pluralismo poderia ser assim resumido: a tese é sedutora, mas sua efetividade é particularmente dolorosa. Sara e Jack Gorman falam (em seu ótimo Denying to the Grave) do “efeito dopamina”, isto é, o “prazer genuíno que as pessoas experimentam quando escutam ideias que combinam com as suas crenças”. Isso explica muito da whatsappização do nosso mundo social. O pensamento tribal é autodestrutivo nas democracias, mas nos oferece doses diárias de um pequeno prazer. Sua origem é ancestral. Pertencer a uma tribo foi questão de vida ou morte, no ambiente hostil de nossa evolução. Nossa razão foi formatada para combater, em não nos aproximar da verdade. E possivelmente por isso a promessa iluminista seja tão complicada.

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Em um plano bem mais singelo, quem definiu bem essas coisas foi o Neymar. Espancado pelos elefantes digitais por expressar sua opinião política, deu um toque exemplar: “Falam em democracia e um montão de coisa”, escreveu ele, “mas quando alguém tem uma opinião diferente é atacado pelas próprias pessoas que falam em democracia”. Achei engraçado. Talvez tenhamos um problema quando a melhor lição sobre a democracia vem do Neymar. Dos males, o menor. Oxalá aprendamos alguma coisa.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810

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