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O que vamos aprender?

Na campanha, o debate econômico ficou em segundo plano

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 dez 2022, 08h00

“O duro é sair de uma eleição e não aprender nada”, me diz um amigo, um tanto melancólico, por estes dias. O Senado havia acabado de aprovar mais um rombo fiscal perto de 200 bilhões de reais, e me lembrava de um discurso perdido no tempo, do ex-ministro Antonio Palocci, em 2006, dizendo que a responsabilidade fiscal era um “compromisso de ouro” do presidente Lula, que havia sido um erro votar contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, que o rigor fiscal podia ser difícil, no curto prazo, mas que ao longo do tempo era o que permitiria sustentar políticas para os mais pobres. E que essa não era mais a visão de uma parte, mas de todo o sistema político. Doce ilusão. Anos depois, o país quebrou. Exatamente pelo pecado do qual Palocci achava que havíamos nos livrado. Em dois anos, a economia encolheu mais de 7%, perto de 4 milhões de pessoas cruzaram para baixo a linha da extrema pobreza, tivemos um impeachment e passamos alguns anos em “voo de galinha”, crescendo pouco mais de 1%. Devagar fomos retomando algumas reformas e o país deve crescer 3% neste ano, a taxa de investimento é a maior em quase uma década, movida pelo setor privado, e o desemprego é o menor desde 2015.

Dito isso, a frase do meu amigo parecia fazer sentido. Ainda antes de apagar as luzes deste ano confuso, lá estavam nossos políticos alegres, comemorando o novo rombo fiscal. “A bolsa cai, o dólar sobe?”, diz Lula, “paciência”. Nos anos que se seguiram à grande crise de 2015/2016, não apareceu nenhum Palocci para fazer autocrítica. A vida política foi tomada pela discussão em torno dos escândalos de corrupção, depois pela guerra santa (e vitoriosa) de Lula contra seus julgadores, e logo o debate hiperbólico em torno da ascensão da “nova direita”, o pecado dos pecados que nosso mundo político não podia perdoar. Nesse redemoinho, parece ter passado despercebida a série de reformas que o país fez, desde 2016, cujo ponto de partida foi a regra do teto, e, em sequência, a Lei das Estatais, a reforma trabalhista, a da Previdência, o marco das agências reguladoras, a autonomia do BC, o marco do saneamento e tantas outras. Reformas acompanhadas de erros e recuos, mas com o sentido modernizador. Criou-se no país um estranho apagamento. Que as reformas eram irrelevantes, ou quem sabe produto de algum acaso, feitas “apesar dos governos”, como tantas vezes escutei, no calor da rinha de galo política e que nada tinha a nos ensinar sobre as opções em jogo no país.

Na campanha eleitoral, o debate econômico ficou em segundo plano. Se é que existiu. Em seu lugar, criou-se uma série de cortinas de fumaça. Discutimos as fake news, o eterno golpe imaginário, à esquerda e à direita, e temas patéticos como o “candidato pedófilo”, o “canibal”, o fascismo e o comunismo, e uma lista enorme de idiotices. Nestes tempos de mídia irrefletida e viral, os marqueteiros descobriram que era mais eficiente, e fácil, destruir reputações do que construir qualquer coisa. Além disso, assistimos à primeira campanha sob a curadoria intensiva da Justiça Eleitoral sobre a ideia da “verdade”, com farto uso da censura e dos banimentos do mundo digital. O ponto é que pouco de relevante para a economia foi discutido. Ainda me lembro de meu colega Rodolfo Schneider, nos dois debates da Band, perguntando aos candidatos: “Como será pago o Auxílio Brasil de 600 reais?”, sem resposta e nenhum constrangimento.

“Na campanha, o debate econômico ficou em segundo plano”

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Juntando as declarações rarefeitas, no entanto, era possível compreender com alguma nitidez a diferença entre os competidores. Lula escreveu no seu programa e repetiu inúmeras vezes que não faria mais privatizações, que retomaria o “protagonismo” do Estado e dos bancos oficiais na economia, que revisaria reformas, em especial a trabalhista, e terminaria com a regra do teto. Sobre este último ponto, foi perfeitamente coerente, do início ao fim da campanha. Ainda na ida ao Egito, logo após as eleições, disse que o sentido do teto é “tirar dinheiro da saúde, da educação, da ciência e tecnologia… Desmontar tudo aquilo que faz parte do social”. O tema do teto é exemplar: ele expressa, na política brasileira, a mesma ideia-chave da Lei de Responsabilidade Fiscal. A noção de que existe restrição orçamentária, que é preciso fazer escolhas e que se o país deseja aplicar mais em saúde, ou aumentar em 50% a transferência de renda, não há nenhum problema. Só precisa saber de onde vai tirar o dinheiro. Precisa cortar de um lado, fazer reformas, obter ganhos de produtividade no próprio setor público. Enfim, responder àquela pergunta chata, feita duas vezes nos debates da Band.

Sobre esses temas todos, bastava dar uma olhada na forma como os blocos políticos votaram, durante seis longos anos, no Congresso. Sistematicamente, tivemos um bloco reformista e outro contrário. De modo que é preciso fazer um elogio a Lula. Ele vem sendo perfeitamente coerente, na transição, com o que disse, na campanha, o que seu grupo político defendeu nos últimos anos. A transição vem mostrando mais: que a agenda reformista, no mundo político, é frágil e fortemente dependente do Executivo. É o que mostra a quase instantânea sintonia do novo governo com o Centrão, a votação da PEC e da ecumênica flexibilização da Lei das Estatais, apoiada pelo PT, pelo Centrão e por parte do bolsonarismo. Mostra também como o sistema vive do Estado, e o cidadão é basicamente o sem-lobby em Brasília. Nesse tema, havia uma razão para a longa quarentena para os políticos em empresas como o BNDES ou Banco do Brasil: dificultar a captura de áreas de atuação do Estado que deveriam mirar o longo prazo, em um ambiente de mercado. Encarar o vezo patrimonialista. Criar “braços longos” que protejam a gestão pública da política e seus pequenos interesses. No zigue-zague da política, tudo o que foi saudado como novo e promissor, anos atrás, melhorando consistentemente a performance de nossas empresas, subitamente envelheceu. O mesmo ocorre com as privatizações. Até há bem pouco, parecia um quase-consenso que era preciso reposicionar o governo como regulador e que o setor deveria se dedicar a fazer aviões, extrair minério, entregar cartas, distribuir energia, gerenciar portos e aeroportos. O ponto é que o quase-consenso era ilusório, tanto quanto aquela autocrítica do Palocci, sobre a responsabilidade fiscal.

Tudo isso, arrisco dizer, não porque “não aprendemos”, como dizia o meu amigo, mas porque vivemos em uma democracia. A maioria, ou ao menos quem tem hegemonia nos meios de opinião, concorda com essa agenda. E o sistema político é fiel ao príncipe, em nosso (quase) infalível presidencialismo de coalizão. Tudo perfeito. É o direito do vencedor. Aos demais, façam como o Obama sugeriu: esfriem a cabeça e na próxima tentem voltar. Ou, à moda do analista de Bagé de férias em Copacabana, escrevam “perdeu, mané” no espelho do banheiro. Frase que traduz de maneira crua nossa democracia e que será sempre a marca deste ano difícil, que já vai terminando.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820

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