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O país que se perdeu

É da capacidade de separar o joio do trigo que é feita a República

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 10 dez 2022, 08h00

Essa semana foi a vez da deputada Bia Kicis. Ela vinha assumindo uma postura crítica e contundente, em relação à censura praticada no país, e terminou ela mesma banida da internet. A deputada recorreu: “É um direito do investigado ter acesso aos autos para exercer seu direito constitucional à ampla defesa”. A palavra “recorrer”, nesse caso, não parece fazer muito sentido. Há uma decisão “de ofício”, sigilosa, a partir de uma interpretação pessoal e de última instância. A deputada pode ir em alguns programas de rádio, reclamar, mas se exagerar um pouco será proibida de vez de qualquer coisa, quem sabe com uma multa diária de 20 000 ou 30 000 reais. E ponto. É o retrato do que se tornou nosso “estado de direito”.

Ao todo, já são dez deputados com mandato ou recém-eleitos devidamente “apagados”. A Constituição diz que parlamentares são invioláveis por quaisquer “opiniões, palavras e votos”. Está lá, no Artigo 53, uma frase que vale tanto quanto bolinhas coloridas no Brasil atual. Enquanto isso, o país sonâmbulo faz de conta que não enxerga. Uma parte vibra, porque o negócio é calar a turma do outro lado, custe o que custar; outra parte dá de ombros. Alguns se protegem racionalizando algo na linha “nunca fomos a Inglaterra, não é mesmo?”, então que diferença faz mais um absurdo? E há os que andam com medo. Dias atrás participei de um debate com um grupo de eminentes juristas. Em um certo momento, alguém disse: “O senhor está sendo gentil, o que estamos assistindo é uma ditadura do Judiciário”. Houve uma concordância algo constrangida. Achei o termo “ditadura” exagerado. Vejo em tudo isso o vezo patrimonialista. A autoridade que pode apertar um botão e fazer sumir quem quer que seja do espaço público. Um tipo de apropriação. Não só do direito à palavra, de um cidadão ou deputado, mas de um bem público. Exatamente aquela frase que um dia nossos constituintes formularam e nossos representantes juraram respeitar.

A minha maneira de lidar com essas coisas é recorrer à história. Os Estados Unidos de algum modo viveram uma experiência parecida. Foi em 1798, quando o presidente John Adams assinou o Ato de Sedição, que tornava ilegal “escrever, proferir ou publicar qualquer escrito ou escritos falsos e maliciosos contra o governo dos Estados Unidos”. O Ato passou apertado no Congresso, por 44 a 41 votos. Aqui vai uma diferença básica com o Brasil: havia uma lei, aprovada no Congresso, e os eventuais “criminosos” receberiam o devido processo e direito à defesa. Coisas elementares em uma República. Ou não? No caso americano, a justificativa era o risco de guerra com a França, mas é hoje reconhecido que o xis da questão era calar a boca da oposição radical dos democratas-republicanos aos federalistas, então hegemônicos.

Durante a vigência do Ato, o deputado Matthew Lyon foi preso. Era um tipo brigão, que havia dito alguns impropérios contra o presidente Adams. Foi processado, condenado, ficou preso por um tempo e, quando Thomas Jefferson ganhou as eleições, acabou perdoado. Duas dezenas de cidadãos foram processados, na época, a maior parte deles jornalistas. Muitos se tornaram heróis quando tudo terminou. Ocorrido 170 anos depois, o julgamento do caso New York Times v. Sullivan novamente testava a fidelidade americana ao princípio da liberdade de expressão. A Suprema Corte fez questão de observar que, “embora o Ato de Sedição nunca tenha sido votado, neste tribunal, sua validade foi derrotada no tribunal da história”.

“É da capacidade de separar o joio do trigo que é feita a República”

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O que me encanta, nessa história, foi como um país soube reagir ao avanço autoritário, no seio das próprias instituições de Estado. Em primeiro lugar, recorreu a um princípio “existencial” da Constituição: a Primeira Emenda, de 1791, que havia assegurado o primado da liberdade de expressão. Em segundo, houve líderes com inteligência e espinhas eretas. James Madison foi o maior deles, escrevendo seu Virginia Report, de 1800, onde explica que a liberdade de expressão era um direito dos cidadãos, e não uma dádiva do Estado, e que era próprio da vida republicana conviver com a radicalização retórica, o exagero, na linha das “ideias que odiamos”, como definiu muito tempo depois Oliver Holmes. Foi esse o entendimento que a Suprema Corte americana preservou ao longo do tempo. Sua decisão talvez mais exemplar tenha sido tomada em 1969, no famoso caso Brandenburg v. Ohio, que decidiu sobre proteger ou não o discurso de Clarence Brandenburg, um líder da odiosa Ku Klux Klan, transmitido pela TV, com ameaças ao governo em razão dos avanços dos direitos civis.

Clarence foi condenado nas instâncias estaduais e recorreu à Suprema Corte. Venceu por unanimidade. Na decisão, a Corte estabeleceu o que muitos chamariam de “teste de Brandemburgo”: o uso da palavra deve ser garantido a menos que “incitar ou produzir um ato ilegal iminente”. A decisão ratificou uma distinção que está na base da liberdade de pensamento na tradição moderna: a separação entre palavras e ações. É isso, afinal, que está na lei brasileira, quando autoriza punir apenas os que usarem da “violência ou grave ameaça” contra as instituições. De um modo geral, é o mesmo sentido dado pela jurisprudência americana: não é crime advogar teses esdrúxulas, defender uma teocracia, um regime comunista, ditatorial, absolutista ou anarquista. O que não pode é agir. Não pode bloquear estradas, por exemplo, ou fazer algo como aquela patética invasão do Capitólio. É dessa capacidade de separar o joio do trigo que é feita a República.

O problema brasileiro reside no gosto pela irrealidade. Em que pese nossas leis e nossa Constituição assegurem a liberdade de expressão, sua garantia parece funcionar apenas como uma daquelas “ideias fora do lugar”. Somos mestres em fixar princípios liberais, generosos, nas leis, num claro contraste com o vezo autoritário, a interpretação subjetiva e “patrimonial”, ao sabor de quem detém o poder. É assim quando escrevemos que deputados são invioláveis em suas “palavras e opiniões”, apenas não na prática. Ou que é vedada a censura prévia, só não no mundo real. Nossa alma autoritária se derrama por toda parte. Nessas pessoas que rezam nos quartéis por uma interferência, quem sabe extraterrestre, na República; nos mais altos escalões em Brasília, de onde os cidadãos são apagados à moda cherry picking, sem processo ou contraditório, como se o fantasma da Lei de Segurança Nacional continuasse por aí, dando as cartas, à revelia da lei e dos princípios da Constituição.

Cada um a seu modo, parecem todos desejar o seu Bonaparte particular. Sua forma preferida de “democracia de tutela”. Dias atrás, li de uma jornalista que todos parecem felizes em ter um ministro que controla todo mundo. “Mas”, perguntou ela, “quem controla o ministro?”. No fundo, essa é a pergunta de uma democracia liberal. Talvez nos falte um Madison, ou um Jefferson, mas confesso minha indisposição com heróis. O fato é que por ora nos perdemos. Nos falta uma cultura liberal e democrática na base da sociedade. Ao invés do tutor, deveríamos dobrar a aposta no estado de direito e nos remédios previstos na Constituição. Não é a saída mais fácil. Mas seria nossa melhor herança ao futuro, disso não tenho dúvidas.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819

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