Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Fernando Schüler
Continua após publicidade

O inferno de Madison

A convicção levada à última consequência termina por devorar-se

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 14 jan 2023, 08h00

“Passei o Natal lá, debaixo de chuva”, leio de um patriota. O sujeito é aposentado, foi com a família, ficou dois meses acampado em Brasília para “combater o comunismo”. Sua sorte foi ter ido embora antes do ano-novo. Andava cansado. “Essa guerra de informações mata”, ele diz. “É hoje!” “Você viu o sinal? Vai começar!” “Um dia desses soltaram fogos.” “Pá-pá-pá-pá. A gente chegou a comemorar, mas nada.” Os relatos são infinitos. Há material de sobra para uma espécie de “sociologia da hiper-realidade”. Algo que não diz respeito ao direito das pessoas de pensarem o que quiserem, mas ao excesso. O ponto em que se cruza uma fronteira tênue entre a política e a obsessão. E, logo, o fanatismo, com todas as suas consequências. E a grande lição: jamais confundir manifestação democrática com violência. Direito à livre expressão e o crime, devidamente tipificado.

Há muitas lições, todas provisórias, dos acontecimentos recentes. Não só da invasão em Brasília, mas dos bloqueios, dos acampamentos, do radicalismo que tomou conta do debate público, da politização indevida de setores do próprio Estado. A primeira diz respeito a algo que em geral deixamos escapar: o ingrediente tóxico da política. Minha geração cresceu escutando que era preciso “fazer política”, que o “alienado” era o culpado de tudo, como dizia um poema de Brecht, mas a verdade é que aí também existe uma linha que não se deve cruzar. A política é feita de temas complexos, exige “senso de proporção”, como escreveu Weber. E está longe de ser uma disputa entre o bem e o mal, como se tornou lugar-comum escutar, à esquerda e à direita.

A migração em larga escala da vida política para o ambiente digital exacerbou tudo isso. Nos últimos dias, li um bocado de histórias sobre aquelas pessoas acampadas em frente de quartéis, em especial lá na frente do “Forte Apache”, em Brasília, de onde partiu nosso Capitólio tropical. Muitos idosos, pessoas simples, trabalhadores, donas de casa, aposentados. Em geral, religiosos. É evidente que há os “líderes”. Os arruaceiros digitais e presenciais. Gente que fatura com aquilo tudo, com a massa de pessoas enroladas em bandeiras, postando selfies, de bermudas, como se estivessem no Guarujá, em um domingo de verão. Eles expressam um curioso encontro: politização extrema e alienação. Uma senhora idosa, perto dos 80, diz “só escuto os vídeos no YouTube, dos patriotas”. É o padrão. Não é apenas o consumo de fake news, mas a imersão em um tipo particular de realidade. “As pessoas estão vivendo em universos políticos distintos, algo como os mundos paralelos da ficção científica”, diz o cientista político Cass Sunstein, tocando em um tema crítico da democracia atual.

Os acampamentos funcionam como microcosmos da politização obsessiva. Eles nos lembram que a convicção, na vida democrática, pode ser positiva. Mas, levada à últimas consequências, termina por devorar-se a si mesma. Na linguagem utilizada por Sunstein, em seu ótimo livro #Repu­blic, cria-se um “universo de informação perfeitamente controlada”. Com uma agravante: universo cuja principal virtude é a fidelidade e a camaradagem, e no qual toda vacilação diante da grande verdade surge como traição. O perfeito avesso do ambiente em que devem prosperar as sociedades abertas e democráticas, que demanda o que ele chama de “arquitetura de serendipity”. A praça pública onde as pessoas se expõem à diferença e à incerteza. Que não pode funcionar como um show de Truman, onde tudo é programado. Onde ninguém parece desconfiar que logo ali há uma imensa bolha de plástico em que tudo termina, melancolicamente.

Continua após a publicidade

“A convicção levada à última consequência termina por devorar-se”

Aspecto fascinante disso tudo é o flash mob, o súbito aparecimento da “multidão”, na cena pública, por vezes de um modo que aplaudimos, outras vezes deplorável. Um tipo novo de agente, algo sombrio, de contornos pouco definidos, nas democracias, que já chamei de o “quinto poder”. Ele não surgiu agora. Foi dando mostras de sua existência em episódios tão distintos como o Occupy Wall Street, passando pelos movimentos de massa no Brasil em 2013, pelas enormes mobilizações democráticas na Primavera Árabe, até pelas mobilizações violentas, com dezenas de mortos, no Chile de 2019. A lista poderia ir longe. Movimentos democráticos ou autoritários, feitos por pequenas ou grandes multidões. Quem fez sua radiografia foi Manuel Castells: o elemento caótico, a arquitetura de rede, a ausência de comando centralizado, o caráter em geral efêmero e a quase completa ausência de programas ou estratégias. Movimentos que explodem e depois perdem força. E não raro se tornam lembranças tristes, das quais nem sequer conseguimos tirar lições.

A preocupação com o problema das paixões coletivas, na democracia, vem de longe. Foi uma das principais dores de cabeça de James Madison, no desenho da Constituição americana, e o objeto mais intenso de suas leituras, nos meses que antecederam a Convenção da Filadélfia, em 1787. Seu problema era o de como lidar com as facções, a “turbulência e fraqueza de paixões incontroláveis”, às quais uma república sempre estaria sujeita. Madison era cético. Dizia que a república e seus cuidados institucionais eram necessários porque os homens “não eram anjos”, e que, ao longo da história (que ele conhecia bem), “as distinções mais frívolas e fantasiosas foram suficientes para acender paixões hostis e excitar os conflitos mais violentos”.

Continua após a publicidade

Madison não achava possível eliminar o facciosismo, mas apenas atenuar seus efeitos. Apostava que uma república feita de um grande número de cidadãos, como os Estados Unidos, o poder fragmentado e o relativo isolamento das pessoas, no vasto território, teriam um efeito moderador. Ele tinha razão. O ponto é que a emergência contemporânea da tecnologia produziu um abalo nesse edifício. Seu primeiro efeito é quebrar o isolamento. Sejam acampamentos, multidões pelas ruas, movidos a bons ou péssimos propósitos, como se viu no último domingo, podem se organizar quase que instantaneamente, a custo perto de zero, dispensando líderes ou comitês centrais. Inteligência ou irracionalidade coletiva, não importa. A multidão e o espírito de facção parecem ter se reencontrado, em larga escala, e muitos veem nisso um flash do que seria o “inferno de Madison”: a instabilidade crônica da vida republicana, e suas ilusões. A ilusão de que é possível domesticar as pessoas, enxugando sua liberdade. Que é preciso dar ao Estado mais e mais poder sobre a tecnologia, para disciplinar o mundo caótico da opinião, quando a solução nos deveria levar ao caminho inverso: a aposta redobrada na afirmação de direitos, na imparcialidade do Estado, no respeito à lei, no apreço pelo pluralismo, na educação cívica e no desincentivo à política como guerra. E a inversão que não pode ser feita: que a mera opinião seja punida, e a violência, inclusive dos que detêm o poder, tolerada. Os velhos e bons remédios republicanos, enfim, que andavam na cabeça de Madison, naquele verão na Filadélfia, e que nos exigem um pouco mais, na democracia atual.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Continua após a publicidade

Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.